Um artigo publicado a 6 de março de 2018 na página internet do jornal Revolution/Revolución, voz do Partido Comunista Revolucionário, EUA (http://revcom.us/a/533/michael-slate-interview-with-raoul-peck-en.html, em inglês).
Entrevista de Michael Slate ao realizador cinematográfico Raoul Peck sobre o filme O Jovem Karl Marx:
“Precisam de saber quem são os vossos inimigos e como combatê-los”
O seguinte texto é extraído de uma entrevista ao realizador cinematográfico Raoul Peck que foi radiodifundida a 2 de março de 2018 no programa The Michael Slate Show da rádio KPFK da Rede Pacifica. A entrevista completa está disponível em inglês em themichaelslateshow.com.
O The Michael Slate Show vai para o ar todas as sextas-feiras às 10h (hora da costa oeste dos EUA) na rádio KPFK 90.7 FM, em Los Angeles. O programa pode ser ouvido aqui em streaming e os programas arquivados podem ser ouvidos e descarregados aqui (em inglês).
O Revolution/Revolución/revcom.us reproduz algumas das entrevistas do The Michael Slate Show para familiarizar os nossos leitores com os pontos de vista de importantes figuras da arte, do teatro, da música e da literatura, da ciência, do desporto e da política. Os pontos de vista expressos por esses entrevistados são, claro, deles mesmos; e eles não são responsáveis pelos pontos de vista publicados noutros lugares do Revolution/Revolución/revcom.us.
Michael Slate: Raoul Peck é o realizador do recente filme O Jovem Karl Marx. É um filme que nos dá todo um novo e completamente refrescante e inspirador entendimento do nascimento e do desenvolvimento da revolução comunista. Centra-se nos cinco anos que vão de 1843 a 1848 e conta a história do jovem Karl Marx com 26 anos, juntamente com Friedrich Engels, Jenny Marx e Mary Burns, e a luta deles para criarem uma compreensão científica do movimento revolucionário desse tempo. Ao fazê-lo, Marx desenvolveu a ciência da revolução. E hoje em dia esta ciência recebeu uma nova vida dada por Bob Avakian, Presidente do Partido Comunista Revolucionário, EUA – o Marx do nosso tempo e arquiteto de todo um novo quadro da emancipação humana: a nova síntese do comunismo, popularmente conhecida como o novo comunismo.
Com isto como pano de fundo, foi com grande prazer que eu pude ver o filme de Raoul Peck O Jovem Karl Marx e conhecer os primeiros dias da ciência de revolução – e as batalhas para criar essa ciência. Pouco antes da estreia do filme, eu sentei-me ao lado de Raoul Peck e falei com ele...
Raoul Peck, bem-vindo ao programa. Este é um filme notável que eu penso que toda a gente deveria ver, pelo que falemos sobre ele. Eis algo que é muito interessante para mim – porquê este período da vida de Marx? Tu realmente centras-te no período de 1843 a 1848.
Raoul Peck: Sim, foi uma escolha muito difícil, para ser franco. Ao longo dos vários esboços do argumento, começamos basicamente com Marx como estudante de 12 anos na escola secundária dele até ao tempo do exílio dele em Londres, quando ele tinha 32, 33 anos. Mas, pouco a pouco, centrámo-nos no período que começou em França, ou um pouco antes na Alemanha quando ele foi expulso, porque é o período mais interessante e intrigante. É o período em que as ideias se estão a desenvolver e do primeiro passo do assumir da organização da classe operária, da inexistente classe operária até esse momento. A maior parte dos líderes do movimento, sobretudo os socialistas utópicos, eram trabalhadores manuais. Eram alfaiates, eram trabalhadores da madeira – não eram operários que trabalhavam em fábricas.
Marx e Engels surgem nessa conjuntura e mudam tudo e dão a isso a estrutura, dão a costura e mesmo uma abordagem mais educativa. Porque, para Marx, a ignorância nunca ajudou ninguém. É preciso saber quem são os nossos inimigos e como combater esses inimigos. Então tornou-se quase natural lidar com esse momento que não é realmente muito conhecido, porque as pessoas tentam sempre ir para um qualquer monumento da obra de Marx e especificamente para O Capital.
O Capital é, diria eu, a obra modelo em que ele tentou pôr tudo o que tinha acumulado ao longo dos anos, porque a abordagem dele era científica. Portanto, ele precisou de um livro assim, e foi por isso que demorou tanto tempo a escrever [o 1º Volume de O Capital foi publicado em 1867]. Mas a evolução das ideias, o início e também a energia da juventude eram importantes para nós. Ele disse que os filósofos tinham passado o tempo a analisar o mundo quando o que era preciso ser agora, fazer agora, é mudá-lo. Isso foi uma decisão monumental nesse momento.
Michael Slate: Falemos sobre a cena de abertura do filme, a qual realmente determina o tom de muito do resto do filme – a implacável opressão e a luta para mudar isso.
Raoul Peck: Foi necessário mostrar desde o início o tipo de violência de que estamos a falar – uma violência cega e sem sentido. Está no centro, diria eu, da reação do jovem Marx, porque ele era alguém que não podia aceitar a desigualdade, a injustiça e a repressão, enquanto jornalista – porque nessa altura isso era basicamente o que ele era. E eu também adoro essa cena, porque, em primeiro lugar, ela mostra a violência dessa altura. Aquelas pessoas nos bosques a tentar sobreviver retirando madeira da terra, na profundidade da floresta, e a floresta pertence a um classe rica – e nem isso lhes é permitido pela lei em vigor. E isso era uma contradição total, e Marx escreve que se as pessoas não entendem a injustiça da lei e o absurdo disso, não podem obedecer a essas mesmas leis e são levadas a se revoltarem. De um ponto de vista filosófico e político, este foi o melhor início que eu poderia ter. A partir desse momento, podemos ver a evolução de Marx e depois de Engels em conjunto com ele.
E, visualmente, claro que isso era importante porque eu sabia que no resto do filme não teríamos muito espaço e tempo para nenhuma situação de ação, porque o que houve foi uma luta intelectual durante a maior parte do tempo até 1848, quando eles escreveram o Manifesto Comunista. Foi importante datar o momento e mostrar visualmente – e mesmo nos corpos das pessoas – o tipo de violência de que estamos a falar nessa época no mundo ocidental. E foi muito simbólico.
Michael Slate: Devo dizer que há muitos paralelos com o mundo de hoje. E muitas das mesmas questões e assuntos continuam a ser colocadas, especialmente quando se pensa nos imigrantes que vêm trabalhar para este país e no que está a acontecer às pessoas.
Raoul Peck: Bem, era essa a ideia. Como é que forneço ferramentas aos jovens de hoje para eles entenderem o que está a acontecer? Porque, nos últimos 40 anos, tivemos mudanças inacreditáveis, mudanças que não nos trouxeram muito mais clareza. Pelo contrário, ofuscaram tudo – nem sequer sabemos que notícias são reais e que notícias são falsas. Sinto que acabámos por chegar a um lugar de ignorância ao qual é muito difícil reagir. Que deve fazer alguém que é um artista, um escritor, um realizador de cinema, para contrariar isto, porque não é algo com que se possa lidar no espaço de um projeto, de um filme, de um livro ou de um ano. É realmente, como é que vamos enfrentar os próximos 30-40 anos? É isso que está em jogo.
Uma vez mais, para voltar ao meu filme, a minha modesta tentativa de pelo menos fornecer algum tipo de ferramenta teórica, um instrumento para se entender o que está a acontecer. Posso dizer que sim, tive um tremendo discernimento e um grande debate em muitos dos países onde o filme foi exibido – em França, na Bélgica, na Alemanha. Posso ver quão motivados estavam os jovens nas discussões e espero que também aconteça o mesmo aqui. Mas será que tem a ver com a maneira como nós recuperamos a nossa capacidade de análise? Como é que invertemos esta crescente e permanente ignorância sobre as coisas, a individualização de cada grupo? Nós adoramos o nosso coletivo, e não pode haver uma verdadeira mudança sem coletivos, sem mentes coletivas e sem ambição de mudança. O filme é precisamente sobre como dar às pessoas a capacidade de voltarem a pensar.
Michael Slate: Falemos sobre Proudhon. Ele era um filósofo radical respeitado que se exprimiu contra a opressão no capitalismo inicial. A maneira como tratas a relação entre Marx e Proudhon mostra a largueza de pensamento que Marx e Engels tiveram em termos de chegarem a pessoas como Proudhon com quem tinham diferenças – mas eles também pensavam que pessoas como ele podiam fazer contribuições importantes. Ao mesmo tempo, Marx não era liberal com toda a gente. Há um momento em que Proudhon caminha até Marx e lhe oferece o mais recente livro dele. Marx olha para o título, A Filosofia da Pobreza, e sabe que vai ter dizer alguma coisa contra os argumentos avançados por Proudhon para poder desenvolver o tipo de movimento revolucionário que era necessário.
Raoul Peck: Tu sabes que é uma história real e, entre os dois, eles tinham brincado durante muito tempo ao gato e ao rato. Claro que, ao início, Marx respeitava Proudhon. Marx era uma personagem muito peculiar. Ele era muito impaciente quando sentia que as pessoas não estavam a progredir como deveriam e, em particular, em relação aos grandes pensadores. Portanto, ele reconhecia a importância de Proudhon e respeitava-o muito. Mas, a certa altura, sentiu que Proudhon estava a ser preguiçoso e que não iria mais longe que o espaço que já tinha, porque nessa altura Proudhon já era muito famoso no movimento. Marx percebeu que, a certa altura, o filho mais jovem tem de matar o pai para poder emergir. De alguma maneira, foi isso que aconteceu. Esse é um aspecto do filme em que eu tive de encontrar uma maneira de explicar mesmo qual era a posição de Marx como alguém que queria estabelecer um socialismo mais científico. E os dois grandes movimentos eram, de um lado, os socialistas mais utópicos como Proudhon e os mais socialistas populistas como Weitling. Portanto, ele era a personagem perfeita para mostrar aquilo que Marx e Engels estavam a defender exatamente...
Michael Slate: Há a questão continuamente salientada ao longo do filme sobre as leis que não são leis da natureza mas leis do homem, leis de relações de produção criadas pelo homem – e de como as coisas não têm de ser desta maneira. Há uma certa maneira como a sociedade é organizada, mas as pessoas precisam de avançar e mudar isso.
Raoul Peck: Desde Hegel e Feuerbach que essa é a questão fundamental – o homem faz a história, e isso significa que se o homem faz a história, ele pode mudar a história. É essa a importância fundamental disso. Em particular, num tempo assim [agora], ouvimos realmente muitas pessoas que estão totalmente desencorajadas. Elas estão desencorajadas contra os políticos – todos eles são corruptos. E estão desencorajadas até contra o processo eleitoral democrático. Elas não votam porque tudo está manipulado e nada faz sentido, etc.
Portanto, é realmente importante fazer entender que, qualquer que seja a situação, só nós podemos mudar isto. Só o acumular da nossa força e da nossa resistência e do nosso compromisso pode mudar alguma coisa. A história dos trabalhadores tem mostrado isto. Nada do que temos hoje em termos de democracia, em termos de processo, foi o resultado de alguém que nos deu isto. Foi sempre o resultado da luta, das pessoas que morreram, das pessoas que se organizaram. Seja a independência dos estados Unidos, seja a guerra civil e a libertação dos escravos, seja o Movimento pelos Direitos Civis, seja o movimento feminista, o direito das mulheres a votarem, o direito ao trabalho e à proteção no trabalho – tudo isto foi o resultado de lutas e de as pessoas compreenderem a situação delas, de se unirem, de lutarem coletivamente e de imporem as mudanças. É isso que estamos a perder neste preciso momento.
Michael Slate: E isso é uma das coisas que para o fim do filme eu pensei que era realmente importante – o argumento, a luta para concretizar de facto o Manifesto Comunista que iria libertar o mundo de uma maneira que nunca tinha sido vista antes, que poderia libertar os povos do mundo de uma maneira que nunca tinha sido vista antes.
Raoul Peck: Exatamente. E se te lembraste, a propósito, hoje é o 170º aniversário do Manifesto Comunista. Se o leres hoje, se leres pelo menos o primeiro capítulo, é exatamente a descrição do que está a acontecer com o capitalismo hoje. É totalmente atual e presente, o que ele diz sobre os capitalistas sem freios que invadem os planetas, que não hão nenhum limite e que atravessarão crise atrás de crise e destruirão muitas instituições, etc., etc. Portanto, é exatamente o que está a acontecer hoje.
Michael Slate: E o apelo a que todas as pessoas se ponham de pé e acabem com isto.
Raoul Peck: Claro, porque não haverá nenhuma solução mágica. E, pior, se só nos basearmos na nossa raiva ou numa qualquer revolta, essa é a melhor maneira de causarmos ainda mais danos. Isso é uma coisa que acontece na cena com [o socialista populista] Weitling, em que Weitling está quase a dizer, bem, se toda a gente estiver suficientemente enfurecida, podemos usar todas as pessoas, até os criminosos das prisões, e podemos pô-las na rua e mudar o sistema. E Marx disse: não, não podes fazer isso, precisas de educar as pessoas. Elas precisam de saber porque é que estão a lutar. Portanto, a organização é tão importante quanto o conhecimento da situação ou a raiva que se tem.
O filme está disponível online com legendas em português do Brasil: