Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 5 de Junho de 2013, aworldtowinns.co.uk
Turquia: Um carnaval luminoso sob a sombra de um estado vingativo
“Começou por ser sobre um parque, mas agora é sobre tudo”, escreveu alguém no Twitter a meio da noite enquanto os manifestantes combatiam a polícia na Praça Taksim em Istambul.
Os eventos começaram na manhã de segunda-feira, 28 de Maio, quando cerca de 50 manifestantes se puseram à frente das escavadoras que se preparavam para atacar as árvores do Parque Gezi, adjacente à Praça Taksim. Nos dias seguintes, o parque foi permanentemente ocupado por jovens com afinidades com o movimento global Ocupar e por outras pessoas decididas a salvar um dos últimos espaços verdes da cidade. O primeiro-ministro Recep Tayyip Erdoğan tinha anunciado que os quartéis militares otomanos que antes se situavam nesse local iriam ser reconstruídos para alojarem um centro comercial e condomínios, bem como uma nova mesquita. A natureza simbólica e provocadora do anúncio que ele fez tornou-se ainda mais claro quando se soube que ele tinha decidido derrubar as árvores agora e recorrer aos arquitectos depois.
Este projecto representa a intersecção entre o Islamismo e os aspectos mais especulativos e monopolistas do capitalismo turco com o governo de Erdoğan. O objectivo era demolir uma praça em cujo centro está um monumento a Mustafa Kamel Ataturk, o homem que transformou o estilhaçado Império Otomano da Turquia ao fundar uma república laica após a I Guerra Mundial, e tornar os construtores e os financeiros ligados ao círculo íntimo do primeiro-ministro ainda mais escandalosamente ricos.
Às 5 da manhã da sexta-feira, 31 de Maio, a polícia atacou. Disparou granadas de gás lacrimogéneo para as tendas ainda com as pessoas que nelas dormiam, entre as quais crianças, fez avançar escavadoras para arrasarem tudo e lançou fogo ao acampamento. Centenas de manifestantes, jornalistas e transeuntes ficaram feridos. Uma tentativa de protesto pacífico foi dispersa. Em vez de pôr fim aos protestos, este ataque fez com que muitos milhares de pessoas de toda a sociedade sentissem que tinham de ir em seu auxílio. Algumas pessoas gritaram: “Obrigado, Tayyip, pela chamada de despertar”.
Jovens que atiravam pedras e outros objectos ripostaram contra a polícia em duras batalhas que duraram todo o dia e toda a noite. No dia seguinte, a polícia retirou-se da praça e os manifestantes fecharam as entradas com altas barricadas construídas com pedras da calçada, barreiras de controlo de multidões tomadas à polícia, sinais de trânsito e outros objectos. Alguns apoiantes deixaram os seus carros e autocarros a impedir o acesso da polícia. Moradores de apartamentos vizinhos ofereceram as suas instalações aos manifestantes. A praça foi transformada num local de debate político, concertos e dança, numa zona de refeição para os trabalhadores dos escritórios que surgiam com curiosidade e encorajamento, e numa casa longe de casa para as pessoas que vinham para o seu primeiro protesto político de sempre e que ali ficaram. Foram instalados um local de primeiros socorros e uma biblioteca.
Muitas pessoas não tinham vindo com a intenção de lutar mas, sob ataque, acabaram por o fazer. Havia piadas sobre o tema “Gezi gazzi” – eu não pude deixar de o fazer, eu estava gaseado (inebriado), ou eu estava cansado mas fui gaseado em Gezi.
Eram estudantes e professores do ensino secundário e universitário (as universidades suspenderam os exames finais); artistas, arquitectos, urbanistas e outros intelectuais (alguns deles estiveram entre os primeiros manifestantes); médicos e advogados (as respectivas associações defenderam os manifestantes, e muitos deles foram ajudá-los); jovens dos bairros pobres e os seus pais, muitos deles de origem curda; trabalhadores de colarinho branco e homens de negócios; comerciantes (muitos deles distribuíam limões e leite para aliviar os olhos queimados pelo gás lacrimogéneo e pelo gás pimenta); vendedores ambulantes; e donas de casa de todo o tipo, incluindo de famílias camponesas tradicionais, algumas de véu, outras não. Alguns dias depois, as duas confederações sindicais da função pública convocaram uma greve de dois dias e os seus membros juntaram-se aos jovens.
Ignorando o protesto, o primeiro-ministro realizou a cerimónia marcada de inauguração da construção de uma terceira ponte sobre o Bósforo, um projecto concebido para deleitar os especuladores imobiliários e financeiros e conseguir a expulsão final daquela parte da cidade das classes mais baixas e da própria natureza. Falando sobre os manifestantes de Gezi, disse: “Não interessa o que vocês façam. Nós tomámos uma decisão e vamos avançar com essa decisão”. A ponte, anunciou ele, iria ser chamada Sultão Selim Yavez (o Grande), em homenagem ao governante hereditário do século XVI que transformou o Império Otomano num califado (estado islâmico), também conhecido pelo massacre de membros da minoria religiosa Alevi.
Enquanto os principais canais de televisão transmitiam concursos de beleza e programas de cozinha e ignoravam as notícias, no Twitter, o hashtag #Direngeziparki transformou-se no mais popular do mundo, com 25 milhões de pessoas a segui-lo. Erdoğan viria a chamar ao Twitter e a outras redes sociais “a pior ameaça à sociedade”.
Com um veículo de construção à cabeça, originalmente trazido para demolir o parque, os jovens atacaram os escritórios do primeiro-ministro em Istambul. Dezenas de milhares de pessoas da parte da cidade do outro lado do Bósforo enfrentaram a polícia e marcharam através de uma ponte normalmente fechada aos peões para se juntarem aos protestos.
Uma gravação aérea nocturna da cidade mostra luzes a piscar, a acender e a apagar em solidariedade, em edifícios de apartamentos por toda a cidade, e em todo o lado havia uma algazarra de pessoas a bater panelas e tachos ou a bater com colheres contra os candeeiros de rua, mesmo em Bulgurlu, considerado uma praça-forte do partido no governo, o AKP de Erdoğan.
Os escritórios do partido governamental em Ancara e Esmirna foram incendiados. Manifestações e batalhas com a polícia também tiveram lugar em Adana, Antalya e muitas dezenas de outras cidades e vilas, em pelo menos três quartos das províncias da Turquia.
Nos confrontos com a polícia, nos ataques e contra-ataques, inúmeras mulheres estiveram na vanguarda da luta, apreciando a oportunidade de lutarem pelo que elas vêem como sendo um confronto sobre o tipo de mundo em que irão viver. Havia mulheres com vestidos brilhantes que levantavam os braços num gesto trocista “Que venham eles” para a polícia de choque; mulheres com tops curtos e as mãos embrulhadas em trapos para que pudessem agarrar as latas de gás lacrimogéneo; muitas jovens estudantes de jeans, algumas com véu e algumas também com máscaras do movimento Ocupar; e outras mulheres de todas as idades e classes.
Algumas mulheres lutaram; algumas andaram de um lado para o outro como a maioria das pessoas; algumas trouxeram pão fresco e chá para manter toda a gente animada; algumas foram a casa e espalharam o ritmo dos cantos nos seus bairros. A polícia, que estava a pulverizar as pessoas na cara com jactos de gás pimenta e a disparar a curta distância munições que partiam os ossos e penetravam a carne, mostrou um ódio particularmente violento contra as mulheres. Algumas fotografias na internet mostram várias mulheres desafiadoras apanhadas num fogo cruzado de canhões de água carregada com um gás suficientemente forte para causar sérios danos.
Algumas mulheres entraram nesta batalha sem uma clara consciência dos perigos específicos, mas talvez o seu entusiasmo pelo confronto simbólico e físico derive de um sentimento de que elas são um alvo central do programa e de Erdoğan. Ele tentou proibir os nascimentos por cesariana e impôs restrições ao aborto, não tanto em nome da religião mas porque, tal como ele opinou uma vez na televisão, as “mulheres turcas” (querendo dizer as turcas étnicas, não as das minorias do país) deveriam ter mais bebés. No clima abertamente patriarcal que Erdoğan ajudou a promover, as mortes de honra, há muito uma praga na Turquia, aumentaram nitidamente, com poucos processos judiciais. Esta participação das mulheres não é apenas uma característica interessante e positiva. É uma das melhores características deste movimento.
Outras das suas características é ser uma efusão de oposição ao governo por parte de muitas dezenas de milhares de pessoas, enquanto os partidos políticos da oposição não têm desempenhado um papel dirigente. O foco é o governo do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdoğan. Muitos dos manifestantes exigem que ele ouça as pessoas. Outros têm exigido, desde o início, a demissão dele e cada vez mais a cabeça dele. Mas é mais uma enorme convergência de diversos fluxos que uma coligação política.
Há um desconforto geral com a recente aceleração por Erdoğan da islamização da sociedade turca. Recentemente, o mundialmente conhecido pianista Faisal Say foi julgado e condenado por um tweet que comparava a visão muçulmana do céu a uma casa de prostituição. Um casal jovem teve problemas por se estar a beijar no metro de Istambul. A venda de álcool foi restringida e Erdoğan declarou que só os alcoólicos lhe tocam. Isto foi percebido como uma bofetada a Ataturk que fazia questão política em beber como parte do estabelecimento de um estado e uma sociedade ocidentalizados e não religiosos.
Enfurecida com tudo isso, num bairro residencial perto da Praça Taksim, uma mulher muito anciã e uma mulher rural muito mais jovem que limpa o apartamento dela saíram do apartamento delas de braço dado, compraram latas de cervejas e sentaram-se no banco de uma paragem de autocarro. Beberam um pouco e ergueram as suas latas no ar para que toda a gente pudesse ver a solidariedade delas para com os manifestantes que gritavam: “Obrigado por proibirem o álcool, agora nós percebemos”. As pessoas também organizaram beijos públicos em massa.
Agora, nas ruas parece haver um enorme desejo de unidade. Numa cidade dividida por rivalidades futebolísticas mortais, havia manifestantes que usavam t-shirts de uma equipa e cachecóis dos seus inimigos figadais. Uma fotografia muito reproduzida mostra um trio de jovens a fazer os sinais de mãos dos Lobos Cinzentos fascistas, dos kemalistas laicos e dos esquerdistas. Havia faixas pelos direitos dos gays e alguns retratos de Ibrahim Kaypakayya (o fundador do movimento maoista da Turquia). O principal partido de oposição, o esvaziado CHP que se considera herdeiro de Ataturk, não desempenhou um grande papel até agora. Muitos dos manifestantes votaram em Erdoğan e muitas pessoas estão fartas de todos os partidos políticos. Mas os símbolos políticos mais comuns eram distintivos, bandeiras e retratos de Ataturk. Embora os curdos estejam a participar individualmente e haja algumas bandeiras e cantos em defesa do PKK e do seu líder Abdullah Öcalan, em geral a questão da libertação do povo curdo esteve perdida num mar de bandeiras turcas.
Alguns dos manifestantes são crentes religiosos que sentem que Erdoğan está a instrumentalizar a sua fé. Alguns opõem-se em geral ao domínio religioso. A maioria parece considerar-se laica. Mas esse mesmo laicismo inclui tendências contraditórias. O kemalismo (como é chamada a ideologia de Ataturk) foi sempre reaccionário. A visão dele da “unidade” da Turquia sempre significou a opressão dos curdos e outras minorias que constituem uma grande parte da população. Quando os manifestantes em Istambul gritam “Nós somos Turcos, não árabes” – uma das ideias assinatura de Ataturk para levar a Turquia para o lado das potências ocidentais em vez do mundo árabe –, este tipo de oposição ao islamismo está envenenado com o chauvinismo turco e as ambições reaccionárias de domínio regional como parceiro júnior à disposição das potências imperialistas ocidentais.
Embora se tenham oposto a um estado religioso, os herdeiros de Ataturk reprimiram a escolas não sunitas do Islão (como os Alevis) e deram apoio estatal às instituições religiosas sunitas. Embora Ataturk tenha proibido o uso público do véu pelas mulheres e promovido o que sob outras formas é percebido como sendo valores ocidentais, o estado turco que ele fundou tem-se baseado tanto no mofo tradicional do sistema patriarcal como na promoção de uma forma mais ocidentalizada (e por vezes decadente).
De facto, os mais fervorosos seguidores de Ataturk foram os generais da Turquia que mantiveram o país sob uma mão de ferro durante grande parte do final do século XX, com a bênção das potências imperialistas. As queixas vindas de Washington e outras capitais ocidentais sobre a “reviravolta autoritária” de Erdoğan têm de ser vistas a essa luz. Ironicamente, alguns dos partidos de “esquerda” que agora estão nas ruas contra Erdoğan e ao lado dos kemalistas deram-lhe até agora o seu apoio ou aprovação, com a desculpa de que “ele salvou-nos dos generais”.
Este tipo de pensamento confuso é particularmente perigoso numa situação confusa. A coligação política e de classe em torno de Erdoğan está a desfazer-se, embora não necessariamente de uma forma irreparável. Como explicou um observador bem informado, Erdoğan tornou-se primeiro-ministro com o apoio da Tusiad, a associação dos mais poderosos capitalistas da Turquia dependentes do imperialismo, dos dirigentes das grandes empresas que detêm os grandes bancos e monopolizam sectores industriais como os têxteis, os electrodomésticos e outros bens de exportação e construção. Numa altura em que a globalização estava a forçar uma reestruturação da classe dominante da Turquia e os partidos tradicionais se tinham tornado ineficazes, a tarefa dele foi reparar a estrutura de poder e alargar a sua base social, atraindo os recém-surgidos capitalistas rurais tradicionais de pensamento islâmico, que gostam de se chamar “tigres da Anatólia” como sinal das suas aspirações de riqueza e poder. Ele também apelou à população rural piedosa e aos que vinham para as cidades.
Erdoğan promoveu-se como um duro dos bairros pobres de Kasimpasha, não muito longe de Taksim. Mas o sucesso político dele junto dos sectores da classe dominante baseou-se na promessa fundamental de não mudar nada de uma forma radical. A forma dele de lidar com os pobres urbanos foi um populismo reaccionário baseado numa espécie de vingança cultural contra os “Tarabyav”, as pessoas de um bairro opulento e laico de Istambul. Isto foi combinado com “a carta curda”, as tentativas dele de há muito tempo de levar o PKK e os capitalistas curdos para baixo da asa dele, simultaneamente mitigando o “problema curdo” e obtendo um aliado com influência entre um importante segmento dos pobres rurais e urbanos.
Porém, o precipitado desenvolvimento económico sob a liderança dele originou mudanças políticas. Há uma questão quanto a se saber se ele ainda sente necessidade do apoio dos recém-enriquecidos e menos poderosos “anatolianos”, e um sentimento de que o programa dele visa favorecer as grandes forças financeiras do país e encorajar o tipo de especulação de “bolha” que pode levar a Turquia pelo caminho da Grécia. Muitas pessoas a vários níveis estão preocupadas por as políticas de Erdoğan em relação à Síria poderem levar o país a uma guerra civil étnica e religiosa regional. Pode dizer-se com certeza que muitas pessoas no topo estão preocupadas por ele estar a arriscar em vez de a solidificar a coligação dominante.
Ao mesmo tempo, as políticas de “desenvolvimento urbano” dele representam o enriquecimento de um círculo muito restrito de empresas ligadas ao governo e de grandes capitalistas cujo poder (incluindo sobre a comunicação social) é amplamente repudiada entre os outros capitalistas. A “renovação urbana” tem ocorrido à custa de bairros pobres. O crescimento económico resultou numa intensificação da polarização de classes. Em zonas onde o AKP antes distribuía pão, está agora a deslocar escolas e outras instalações para os subúrbios e a forçar as pessoas a mudarem-se, não através da força bruta, mas persuadindo-as a assinarem contratos para novas habitações em zonas distantes antes de as suas velhas casas serem deitadas abaixo. Muitas vezes, esses contratos colocam as pessoas mais que nunca à mercê de obrigações feudalistas em relação a indivíduos poderosos. E isto não é muito popular. Também é significativo que até agora o PKK tenha ajudado a manter as cidades do leste curdo (como Diyarbakir) menos turbulentas que outras zonas.
O descontentamento com o desprezo programático de Erdoğan pelas forças cujo apoio, ou pelo menos consentimento, foi tão crucial para o sucesso dele, vai a par do alarme claro em relação ao estilo político bélico dele, como se o destino da Turquia estivesse só nele. A arrogância dele tem uma base, já que a sua coligação governamental poderia não poder sobreviver sem ele, mas também poderá não conseguir sobreviver com ele.
Além do que se está a passar nas ruas, há outros sinais de fendas na classe dominante. Algumas unidades do exército não têm ajudado a polícia em vários incidentes. O dirigente da associação de juízes fez um aviso a Erdoğan, insinuando que o estilo político dele não é islâmico. O facto de hotéis de cinco estrelas terem transformado os seus salões de entrada em instalações médicas de emergência para os manifestantes e de terem mesmo fornecido pessoal (em contraste com a Starbucks, que fechou as suas portas), é uma interessante mudança nos acontecimentos, mas pode estar relacionada com estas divisões e com um sentimento geral de que um maior deslizar para um regime islâmico seria mau para os negócios, já para não falar no turismo.
Algumas forças estão a tentar recompor as coisas, com ou sem Erdoğan. A actuação do Vice-Primeiro-Ministro turco Bulent Arinc para se desculpar aos manifestantes pode ser uma questão de “polícia bom, polícia mau”. A bolsa de valores turca, que tinha caído abruptamente, voltou a subir depois deste gesto. Tentando afastar alguns dos segmentos do movimento, Arinc chamou “justos e legítimos” aos protestos contra o arranque das árvores e condenou a “força excessiva” da polícia, mas ao mesmo tempo disse que o movimento tinha sido tomado por “elementos terroristas” e recusou-se a retirar a polícia, a proibir o uso de gás lacrimogéneo ou a amnistiar os que foram presos. Disse que os manifestantes agora eram apenas salteadores (“capulcu”). Isto promoveu uma vaga mundial de todo o tipo de pessoas a colocar vídeos delas mesmas na internet, apresentando-se de uma forma séria ou divertida e declarando: “Eu sou capulcu”.
De facto, houve claramente muito poucas pilhagens e relativamente pouca destruição, além do arranque de pavimentos e mobiliário urbano para erguer barricadas e da recolha de projécteis para usar contra a polícia. Pelo contrário, os jovens têm limpado assiduamente os destroços deixados pela luta para mostrarem a sua seriedade política e talvez para reciclarem materiais para uso futuro.
A atmosfera é festiva em Taksim e noutros lugares quando as pessoas celebram as suas vitórias, mostrando livremente os seus estilos de vida e projectando as suas perspectivas sobre uma futura sociedade feliz. Mas seria extremamente perigoso ignorar a violência e a força do estado e a possibilidade de que Erdoğan irá prosseguir tácticas de “tudo ou nada” para mostrar que ele e só ele o pode liderar.
Erdoğan tem dito que, por ter recebido 51 por cento dos votos nas últimas eleições, ninguém tem direito a desafiá-lo. Também disse que as manifestações só estavam a ocorrer nas maiores cidades, e que o resto do país o apoiava. Avisou que poderia não conseguir manter a metade da sociedade ao lado dele em casa muito mais tempo. Ameaçando não só com a repressão mas com algo mais parecido com uma guerra civil, declarou: “A Praça Taksim não pode ser uma zona onde os extremistas estão à solta. Se isto tem a ver com organizar um protesto, com um movimento social, eu irei (...) juntar 200 000 onde eles juntam 20, e onde eles juntam 100 000, eu juntarei um milhão de apoiantes do partido. Não seguiremos por essa via”.
Até agora há relatos de dois jovens mortos, por desconhecidos, em Istambul e em Ancara, e alguns observadores vêem isto como obra das milícias do AKP. Há relatos de civis com facas a juntarem-se à polícia no espancamento e na tortura de manifestantes apanhados em becos. Na cidade de Antalya, no sudoeste do país, a organização de juventude do AKP atacou manifestantes.
Independentemente da abordagem que o estado tome, a situação é muito perigosa para a classe dominante, porque qualquer recuo do regime pode incentivar as pessoas nas ruas, enquanto uma recusa a fazer qualquer concessão pode enfurecê-las ainda mais. Ao mesmo tempo, a natureza extremamente contraditória do movimento contra Erdoğan é uma vantagem e uma fonte de perigo para os que aspiram a uma mudança social radical, porque abraça ideias muito diferentes sobre que sociedade querem – por exemplo, se a Turquia que querem é uma sociedade em que as minorias e as mulheres são dominadas, e em que todo o país é dominado pelo imperialismo.
O facto de terem surgido fissuras entre as classes dominantes e os reaccionários da Turquia é potencialmente uma grande vantagem para os que desejam uma mudança radical. Mas enquanto as pessoas neste movimento não tiverem alguma clareza sobre a necessidade de se oporem ao kemalismo e ao islamismo, há o perigo de que uma ou outra das várias forças reaccionárias, e não o povo, possam beneficiar deste momento.