Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 11 de Maio de 2015, aworldtowinns.co.uk

Nicarágua: O açúcar é um veneno

Trabalhadores numa plantação de cana-de-açúcar

“O açúcar é um veneno”. Este é um aviso que frequentemente encontramos na comunicação social nos dias de hoje, sobre os perigos do consumo de açúcar. Mas o açúcar é um “veneno” até para os que o produzem.

Nas duas últimas décadas, pelo menos 20 mil trabalhadores perderam as suas vidas por causa das condições de trabalho nas plantações de cana-de-açúcar na América Central. Todos eles sofriam de uma doença renal crónica chamada CKDnT. Segundo a Fundação La Isla, entre 2002 e 2012, em Chichigalpa, uma vasta zona de plantações de cana-de-açúcar no noroeste da Nicarágua, cerca de 75 por cento das mortes de homens entre os 35 e os 55 anos foram causadas pela CKDnT. Quase todas as famílias perderam um membro devido a esta epidemia.

Esta invulgar doença renal não se deve a factores comuns como a hipertensão e a diabetes. Embora a maioria dos estudos (por exemplo, da Universidade de Boston e da Escola de Saúde Pública) mostrem uma correlação clara entre a doença e o trabalho que estes homens estão a fazer, as grandes companhias como a Ingenio San Antonio (ISA), a mais antiga e maior produtora de açúcar da Nicarágua, não aceitam que haja uma ligação entre a CKDnT e as condições de trabalho nas suas plantações. Tal como revelou o jornal The Guardian no seu relato de 16 de Fevereiro, essas empresas “estão a apoiar estudos sobre possíveis causas não-profissionais – tendo recentemente doado 430 mil libras (590 mil euros) para a investigação de ligações entre a genética e a infância e a CKDnT”.

A Administração norte-americana de Segurança e Saúde Ocupacional recomenda 45 minutos de descanso após cada 15 minutos de trabalho pesado em condições de calor extremo, para evitar que o corpo aqueça demais. Durante os meses de colheita, os trabalhadores nos campos da ISA trabalham durante 8 a 14 horas sob temperaturas de 38 °C. Eles trabalham seis ou sete dias por semana e cortam diariamente uma média de sete toneladas de cana-de-açúcar. Recebem 23 cordobas (cerca de 0,75€) por cada tonelada de cana. Independentemente de a CKDnT ser causada directamente por estas condições de trabalho, por substâncias químicas tóxicas ou por uma combinação de factores, ela é muito provavelmente uma doença profissional.

“Se não morremos da doença, morreremos de fome, porque não há mais nenhum trabalho”, diz um homem num documentário sobre a epidemia de CKDnT na Nicarágua, Under Cane [Sob a Cana], de Ed Kashi. Estas palavras dão uma imagem clara da vida naquele país hoje.

A Nicarágua é o segundo país mais pobre da América Latina (depois do Haiti). A sua economia é movida primariamente pelo sector agrícola, sobretudo o café, o algodão, o açúcar e as bananas. Mais de um terço da produção de açúcar da Nicarágua é vendido aos EUA. De facto, os EUA são o maior parceiro comercial do país, fornecendo 25 por cento das importações da Nicarágua e recebendo cerca de 60 por cento das suas exportações.

Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, 48 por cento da população da Nicarágua vive abaixo da linha de pobreza e 79 por cento vive com menos de $2 (1,75€) por dia. A maioria dos indígenas do país, segundo os números da ONU, subsiste com menos de $1 por dia.

Já houve um tempo em que não havia nenhuma cana-de-açúcar, café ou algodão a crescer na Nicarágua e em nenhum outro lugar das Américas. Os conquistadores europeus do Novo Mundo trouxeram não só “armas, gérmenes e ferro”, mas também algodão, café, açúcar e escravos. E assim começou a história do comércio triangular: “O açúcar das Caraíbas era comercializado para a Europa ou a Nova Inglaterra, onde era destilado em rum. Os lucros da venda do açúcar eram usados para comprar bens manufacturados que eram então transportados para a África Ocidental, onde eram trocados por escravos. Os escravos eram então levados para as Caraíbas para serem vendidos aos plantadores de açúcar. Os lucros da venda dos escravos eram então usados para comprar mais açúcar que era transportado para a Europa, etc.” (Wikipédia, Comércio Triangular)

Tal como observou um viajante francês do século XVIII: “Não sei se o café e o açúcar são essenciais para a felicidade da Europa, mas sei muito bem que estes dois produtos explicam a infelicidade de duas grandes regiões do mundo: a América [Latina] tem sido despovoada para haver terras onde os plantar; a África tem sido despovoada para haver pessoas para os cultivar.” (Citado por Sidney W. Mintz em Sweetness and Power, the Place of Sugar in Modern History [Doçura e Poder, O Lugar do Açúcar na História Moderna], 1985, Viking).

Esta história ainda não terminou. A história da Nicarágua, tal como a de tantos outros países, é uma história de pessoas que sempre trabalharam em plantações de produtos agrícolas que nunca tiveram por objectivo alimentá-las, forçadas por senhores de escravos e depois pela própria fome a aceitarem esse trabalho.

Esta é a lógica que rege a economia e as vidas dos nicaraguenses hoje, sob a presidência do ex-revolucionário Daniel Ortega. Há enormes plantações onde o açúcar, o algodão e o café são cultivados para exportação e os lucros da venda são investidos para plantar mais... porque esta é a lógica cega do capital. Um dos poucos produtos manufacturados exportados pelo país é o seu rum de alta gama, apreciado pelo comércio internacional de luxo. O seu sabor não revela a amargura da sua criação nos campos de cana, nas transformadoras e nas refinarias de açúcar. As culturas são cultivadas na esperança de que possam ser vendidas para satisfazer a procura do mercado internacionalizado global, não para satisfazer as necessidades das pessoas.

Ortega é um dos líderes da Frente Sandinista de Libertação Nacional. Em 1979, após uma guerra de guerrilhas, liderou o derrube da dinastia familiar Somoza que governou a Nicarágua durante 43 anos, desde que foi posta no poder pelos Estados Unidos, cujos soldados ocuparam a Nicarágua durante duas décadas. Os EUA reagiram tentando estrangular a economia do país, enchendo o seu principal porto de minas explosivas e fazendo outros actos de sabotagem. A CIA organizou um exército de capangas e mercenários do antigo regime conhecidos como Contras. Financiou esse exército através de acordos secretos de armas com o Irão e do envolvimento na primeira grande vaga do tráfico de cocaína, com resultados genocidas nos guetos norte-americanos.

A estratégia de Washington não foi derrubar directamente os sandinistas mas sim pressionar o governo, castigando a sua própria população através de campanhas de assassinato, violações e tortura nas zonas rurais, matando 30 mil pessoas. As infra-estruturas do país foram tão devastadas que ainda hoje não há nenhuma estrada directa entre a capital e o Mar das Caraíbas.

Ortega, tal como o General Augusto Sandino, a partir do qual o grupo dele recebeu o nome, acabou por aceitar um acordo com os EUA. Mas, ao contrário de Sandino, que também aceitou um acordo que em 1933 pôs fim a uma guerra de guerrilhas contra a ocupação norte-americana mas foi traído e assassinado, Ortega acabou por ser autorizado a juntar-se e a ajudar a modernizar o sistema político que impõe a actual situação da Nicarágua.

Ao mesmo tempo que Carlos Pellas, dono da ISA, alcunhado de rei do açúcar e próximo de Ortega, se tornou no primeiro bilionário do país, muitos trabalhadores, que tiveram de abandonar os seus trabalhos porque estavam a sofrer de CKDnT, têm de usar bilhetes de identidade falsos e voltar a trabalhar no corte da cana porque não há nenhum outro emprego. Eles sabem que de qualquer forma irão morrer em breve, de doença renal crónica ou de fome.

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