Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 5 de Outubro de 2009, aworldtowinns.co.uk
Excertos do relatório da ONU sobre a invasão israelita de Gaza:
“Um ataque deliberadamente desproporcionado, concebido para punir, humilhar e aterrorizar a população civil”
O texto que se segue são excertos do documento do Conselho de Direitos Humanos da ONU de 15 de Setembro: “Direitos Humanos na Palestina e noutros territórios árabes ocupados – Relatório da Missão de Apuramento dos Factos das Nações Unidas sobre o Conflito de Gaza”. Manteve-se a numeração dos parágrafos do relatório, embora estes excertos não contenham necessariamente a totalidade de cada parágrafo e representem apenas uma pequena porção das suas 575 páginas. Os subtítulos constam do documento original. [Ver também o artigo do SNUMAG sobre este relatório.]

32. As forças armadas israelitas lançaram inúmeros ataques contra edifícios e membros das autoridades de Gaza. No que diz respeito aos ataques a edifícios, a Missão examinou os ataques israelitas contra o Conselho Legislativo palestiniano e a prisão principal de Gaza. Ambos os edifícios foram destruídos numa tal extensão que os tornou inutilizáveis. As declarações do Governo israelita e de representantes das forças armadas justificaram os ataques argumentando que as instituições políticas e administrativas em Gaza fazem parte da “infra-estrutura terrorista do Hamas”. A Missão rejeita essa posição. Apurou que não há nenhuma prova de o edifício do Conselho Legislativo e a prisão principal de Gaza terem dado uma contribuição efectiva para a acção militar. Com a informação disponível sobre o assunto, a Missão conclui que os ataques a esses edifícios constituíram ataques deliberados contra alvos civis, em violação das regras da lei humanitária internacional consuetudinária segundo a qual os ataques devem ser estritamente limitados a alvos militares. Estes factos indicam ainda mais ao conselho a séria infracção de extensa destruição de propriedade, não justificada por necessidades militares e levada a cabo ilegal e arbitrariamente.
A Missão examinou os ataques contra seis instalações da polícia, quatro delas durante os primeiros minutos das operações militares a 27 de Dezembro de 2008, que resultaram na morte de 99 polícias e nove pessoas do público. Os cerca de 240 polícias mortos pelas forças israelitas constituem mais de um sexto das vítimas palestinianas. As circunstâncias dos ataques e o relatório de Julho de 2009 do Governo de Israel sobre as operações militares tornam claro que os polícias foram deliberadamente visados e mortos com o fundamento de que, na perspectiva do Governo de Israel, a polícia enquanto instituição, ou uma grande parte dos polícias individualmente, fazem parte das forças militares palestinianas em Gaza, (...) A Missão também conclui que não se pode dizer que os polícias mortos a 27 de Dezembro de 2008 estivessem a participar directamente nas hostilidades e por isso não perderam a sua imunidade civil contra ataques directos a civis com base nisso.
36. Embora as situações investigadas pela Missão não tenham estabelecido a utilização de mesquitas com objectivos militares ou para proteger actividades militares, não se pode excluir que isso possa ter acontecido noutros casos. A Missão não encontrou nenhuma evidência em apoio das alegações de que instalações hospitalares tenham sido usadas pelas autoridades de Gaza ou por grupos armados palestinianos para protegerem actividades militares ou que tenham sido usadas ambulâncias para transportar combatentes ou para outros objectivos militares. Com base nas suas próprias investigações e em declarações de funcionários da ONU, a Missão exclui que grupos armados palestinianos se tenham envolvido em actividades de combate a partir de instalações da ONU que eram usadas como abrigos durante as operações militares. A Missão não pode, porém, ignorar a possibilidade de grupos armados palestinianos estarem activos na vizinhança dessas instalações da ONU e hospitais. Embora a condução de hostilidades em zonas edificadas não constitua, em si mesmo, uma violação do direito internacional, os grupos armados palestinianos, caso tenham lançado ataques perto de edifícios civis ou protegidos, expuseram desnecessariamente a população civil de Gaza ao perigo.
38. A Missão também examinou as precauções tomadas pelas forças israelitas no contexto de três ataques específicos que elas lançaram. A 15 de Janeiro de 2009, um edifício de escritórios da UNRWA [Agência das Nações Unidas para os Refugiados da Palestina no Médio Oriente – NT] na Cidade de Gaza foi bombardeado com munições altamente explosivas e de fósforo branco. A Missão faz notar que o ataque foi extremamente perigoso, dado que o edifício abrigava entre 600 e 700 civis e continha um enorme depósito de combustível. As forças israelitas prosseguiram o ataque durante várias horas, apesar de terem sido totalmente alertadas para os riscos que criavam. A Missão conclui que as forças armadas israelitas violaram o requisito do direito internacional consuetudinário de se tomar todas as precauções possíveis na escolha dos meios e métodos de ataque com vista a evitar e minimizar em todas as circunstâncias perdas incidentais de vidas civis, ferir civis e danificar alvos civis.
39. A Missão também apurou que, no mesmo dia, as forças israelitas atacaram directa e intencionalmente o Hospital Al Quds na Cidade de Gaza e o depósito adjacente de ambulâncias com obuses de fósforo branco. O ataque desencadeou incêndios que demoraram um dia inteiro a extinguir e criaram o pânico entre os doentes e feridos que tiveram que ser evacuados. A Missão apurou que em nenhum momento foi dado algum aviso sobre um ataque iminente. Com base na sua investigação, a Missão rejeita a alegação de que houve disparos de dentro do hospital dirigidos contra as forças israelitas.
40. A Missão também examinou os intensos ataques de artilharia, uma vez mais incluindo munições de fósforo branco, contra o Hospital Al Wafa no leste da Cidade de Gaza, um estabelecimento para pacientes que recebem cuidados de longa duração e sofrem de ferimentos particularmente graves. Com base na informação recolhida, a Missão conclui que, no caso dos dois hospitais, houve uma violação da proibição de ataques contra hospitais civis. A Missão também salienta que os avisos dados por folhetos e mensagens telefónicas pré-gravadas no caso do Hospital Al Wafa mostram a completa ineficácia de certo tipo de avisos rotineiros e genéricos.
41. A Missão examinou o bombardeamento com morteiros do cruzamento de al-Fakhura em Jabalya, na proximidade de uma escola da UNRWA, que na altura era usada como abrigo e alojava mais de 1300 pessoas. As forças israelitas dispararam pelo menos quatro morteiros. Um deles aterrou no pátio de uma casa familiar e matou onze pessoas que aí estavam. Três outros morteiros aterraram na Rua al-Fakhura, matando pelo menos mais 24 pessoas e ferindo cerca de 40.
43. A Missão investigou onze incidentes em que as forças israelitas lançaram ataques directos contra civis com resultados letais. Os casos examinados nesta parte do relatório são, com uma única excepção, todos casos em que os factos não indiciam nenhum objectivo militar justificável visado pelo ataque. Os dois primeiros incidentes foram ataques contra casas no bairro de Samouni, a sul da Cidade de Gaza, entre os quais o bombardeamento de uma casa em que civis palestinianos tinham sido forçados a agrupar-se pelas forças israelitas. O grupo seguinte de sete incidentes diz respeito a disparos sobre civis quando eles tentavam sair de suas casas para irem para lugares mais seguros, agitando bandeiras brancas e, em alguns dos casos, seguindo instruções das forças israelitas para assim o fazerem. Os factos apurados pela Missão indicam que todos os ataques ocorreram em circunstâncias em que as forças israelitas detinham o controlo da zona e tinham entrado previamente em contacto, ou pelo menos observavam, as pessoas que subsequentemente atacaram, pelo que deviam ter consciência do seu estatuto civil. Na maioria desses incidentes, as consequências dos ataques israelitas contra civis foram agravadas pela sua subsequente recusa em permitirem a evacuação dos feridos ou o acesso a ambulâncias.
A Missão examinou um incidente em que uma mesquita foi atingida por um míssil durante as orações do início da noite, resultando na morte de quinze pessoas, e um ataque com munições flechette [de estilhaços] contra uma multidão de uma família e vizinhos numa tenda de condolências, matando cinco pessoas.
47. Os últimos incidentes dizem respeito ao lançamento de uma bomba sobre uma casa que resultou na morte de 22 familiares. A posição de Israel sobre este caso é que houve um “erro operacional” e que o alvo pretendido era uma casa vizinha de armazenamento de armas. Com base nas suas investigações, a Missão expressa sérias dúvidas quanto ao relato das autoridades israelitas sobre o incidente. A Missão conclui que, se realmente foi cometido um erro, não se pôde dizer que se trata de um caso de morte intencional. Porém, continua a existir a responsabilidade do estado de Israel por um acto internacionalmente errado.
50. A Missão investigou vários incidentes que envolveram a destruição de infra-estruturas industriais, de produção de alimentos, de armazenamento de água, de tratamento e armazenamento de esgotos. No início das operações militares, o moinho Al Bader era o único moinho de farinha da Faixa de Gaza ainda em operação. O moinho foi atingido a 9 de Janeiro de 2009 por uma série de ataques aéreos, após ter recebido vários avisos falsos nos dias anteriores.
Dos factos averiguados, a Missão conclui que houve uma violação das regras de infracções graves da IV Convenção de Genebra. Uma destruição ilícita e gratuita não justificada por necessidades militares constitui um crime de guerra. A Missão também conclui que a destruição do moinho foi levada a cabo com o objectivo de negar alimentos à população civil, o que constitui uma violação da lei e das regras internacionais consuetudinárias relativas ao direito a uma alimentação adequada e a meios de subsistência.
51. As explorações de galinhas do Sr. Sameh Sawafeary no bairro de Zeitoun, a sul da Cidade de Gaza, constam que forneciam mais de 10 por cento do mercado de ovos de Gaza. Escavadoras blindadas das forças israelitas aplanaram sistematicamente os galinheiros, matando todas as 31 mil galinhas que aí havia, e destruíram as instalações e os materiais necessários à sua actividade. A Missão conclui que isso foi um acto deliberado de destruição gratuita e não justificada por nenhuma necessidade militar e retira as mesmas conclusões legais que no caso da destruição do moinho.

52. As forças israelitas também levaram a cabo um ataque contra um muro de uma das lagoas de esgotos não tratados das Instalações de Tratamento de Água Usada de Gaza, o que causou a descarga de mais de 200 mil metros cúbicos de esgotos não tratados para as terras cultivadas da vizinhança.
O complexo de Poços Namar em Jabalya consistia em dois poços de água, máquinas de bombagem, um gerador, um depósito de combustível, uma unidade de cloração, os edifícios e o equipamento relacionado. Foram todos destruídos por múltiplas incursões aéreas no primeiro dia do ataque aéreo israelita. A Missão considera improvável que um alvo com a dimensão dos Poços Namar possa ter sido atingido em múltiplas incursões por engano. Não encontra nenhum fundamento que sugira que se obtivesse qualquer vantagem militar ao se atingir os poços e faz notar que não houve nenhuma sugestão de que grupos armados palestinianos tivessem usado os poços para alguma finalidade. Tendo em conta que o direito a beber água faz parte do direito a uma alimentação adequada, a Missão chega às mesmas conclusões legais que no caso do moinho Al Bader.
53. Durante as suas visitas à Faixa de Gaza, a Missão testemunhou a extensão da destruição de habitações residenciais causada por ataques aéreos, por bombardeamentos com morteiros e artilharia, ataques com mísseis, operações com escavadoras e bombas de demolição. Em alguns casos, bairros residenciais foram sujeitos a campanhas aéreas e a um bombardeamento intensivo, aparentemente no contexto do avanço das forças terrestres israelitas. Noutros casos, os factos apurados pela Missão sugerem fortemente que a destruição de habitações foi levada a cabo na ausência de qualquer vínculo a combates com grupos armados palestinianos ou a qualquer outra efectiva contribuição para a acção militar.
54. Os ataques a instalações industriais e a infra-estruturas de produção de alimentos e armazenamento de água investigadas pela Missão fazem parte de um padrão mais vasto de destruição que incluiu a destruição da única fábrica de empacotamento de cimento de Gaza (a fábrica Atta Abu Jubbah), das fábricas de cimento pronto a misturar Abu Eida, de mais explorações de galinhas e das fábricas de alimentos e bebidas do Grupo Al Wadia. Os factos averiguados pela Missão indicam que houve uma política deliberada e sistemática da parte das forças armadas israelitas de visar instalações industriais e de água.
55. A Missão investigou quatro incidentes em que as forças israelitas coagiram civis palestinianos, sob a mira de armas, a participarem em buscas a casas durante operações militares. Os palestinianos estavam vendados e algemados enquanto eram forçados a entrar em casas à frente dos soldados israelitas. Num dos incidentes, as forças israelitas forçaram um homem a entrar repetidamente numa casa em que estavam escondidos combatentes palestinianos. Depoimentos divulgados por soldados israelitas que participaram nas operações militares confirmam a contínua utilização dessa prática, apesar das ordens claras do Supremo Tribunal de Israel para que as forças armadas lhe pusessem fim e das repetidas garantias públicas das forças armadas de que a prática tinha sido suspensa. A Missão conclui que essa prática constitui uma utilização de civis palestinianos como escudos humanos e é portanto proibida pela lei humanitária internacional.
57. Dos factos apurados, a Missão conclui que houve inúmeras violações da lei humanitária internacional e da lei dos direitos humanos, cometidas no contexto das detenções. Foram detidos civis, incluindo mulheres e crianças, em condições degradantes, privados de comida, água e acesso a instalações sanitárias e expostos em Janeiro aos elementos climatéricos sem qualquer protecção. Os homens foram algemados, vendados e forçados repetidamente a despirem-se, por vezes completamente nus, em diferentes fases da sua detenção.
58. Na zona de Al Atatra, no noroeste de Gaza, as tropas israelitas escavaram covas na areia em que detiveram homens, mulheres e crianças palestinianas. Tanques israelitas e posições de artilharia foram instalados dentro dessas covas e ao seu redor e fizeram disparos próximos dos detidos.
59. Homens palestinianos que foram levados para locais de detenção em Israel foram sujeitos a condições degradantes de detenção, duros interrogatórios, espancamentos e outros abusos físicos e mentais.
60. Além de privação arbitrária de liberdade e da violação do direito a um procedimento legal, os casos dos civis palestinianos detidos destacam uma linha comum na interacção entre os soldados israelitas e os civis palestinianos que também emergiu claramente em muitos casos analisados noutras partes do Relatório: abusos continuados e sistemáticos, afrontas à dignidade pessoal, tratamento humilhante e degradante contrários aos princípios fundamentais da lei humanitária internacional e da lei dos direitos humanos. A Missão conclui que o tratamento desses civis constitui a imposição de um castigo colectivo a essas pessoas e equivale a medidas de intimidação e terror. Estes actos são graves violações das Convenções de Genebra e constituem um crime de guerra.
Os objectivos e a estratégia das operações militares de Israel em Gaza
62. As tácticas usadas pelas forças armadas militares israelitas na ofensiva de Gaza são consistentes com práticas anteriores, a mais recente das quais durante a guerra do Líbano em 2006. Nessa altura emergiu um conceito conhecido como doutrina Dahiya, o qual envolve a aplicação de uma força desproporcionada e causar grandes danos e destruição de propriedade e infra-estruturas civis e sofrimento às populações civis. A Missão conclui, a partir de uma revisão dos factos no terreno que ela própria testemunhou, que o que foi indicado como sendo a melhor estratégia parece ter sido justamente o que foi posto em prática.
63. No quadro dos objectivos militares israelitas em relação às operações em Gaza, o conceito de “infra-estrutura de apoio” do Hamas é particularmente preocupante porque parece transformar civis e instalações civis em alvos legítimos.
Hospitais e ambulâncias foram visados pelos ataques israelitas. (...) Foram destruídas escolas e jardins infantis numa situação em que as restrições já existentes à importação de materiais de construção implicam que muitos edifícios escolares já estavam com sérias necessidades de reparação.
75. Finalmente, a Missão analisou se a série de leis que privam os palestinianos da Faixa de Gaza dos seus meios de subsistência, emprego, habitação e água, que negam a sua liberdade de movimentos e o seu direito a entrar e sair do seu próprio país, que limitam o seu acesso aos tribunais e a medicação adequada, seria equivalente a perseguição, um crime contra a humanidade. Com os factos que lhe estão disponíveis, a Missão é de opinião que alguns dos actos do Governo de Israel podem justificar que um tribunal competente apure se foram cometidos crimes contra a humanidade.
Resumo do padrão de políticas e condutas de Israel relevantes para os Territórios Palestinianos Ocupados e vínculos entre a situação em Gaza e na Cisjordânia
198. Desde 1967, Israel tem vindo a construir centenas de colonatos na Cisjordânia, incluindo em Jerusalém Oriental, e na Faixa de Gaza. Esses colonatos foram reconhecidos pelo seu Ministério do Interior como “comunidades” israelitas sujeitas à lei israelita. A acima mencionada Opinião Consultiva do Tribunal Internacional de Justiça e “várias resoluções das Nações Unidas, todas têm afirmado que a prática de Israel de construir colonatos – de facto, a transferência por uma Potência ocupante de partes da sua própria população civil para o território que ocupa – constitui uma violação da IV Convenção de Genebra”.
Em 2007, havia mais de 450 mil cidadãos israelitas a viver em 149 colonatos na Cisjordânia, incluindo em Jerusalém Oriental. Segundo fontes das Nações Unidas, quase 40 por cento da Cisjordânia está agora ocupada por infra-estruturas israelitas associadas aos colonatos, o que inclui estradas, barreiras, zonas tampão e bases militares. Dados divulgados pelo Gabinete Central de Estatísticas de Israel mostram que a construção nesses colonatos aumentou em 2008 num factor de 1,8 em comparação com o mesmo período em 2007. O número de ocupantes em Jerusalém Oriental aumentou em 3728 por cento (1761 unidades de habitação, comparadas com 46 em 2007). Até ao final dos anos 70, o Governo de Israel alegava que os colonatos eram estabelecidos devido a necessidades militares e de segurança, mas desde então já abandonou essa posição.

199. Calcula-se que 33 por cento dos colonatos tenham sido construídos em terras privadas, propriedade de palestinianos.
200. Desde 1967, as autoridades israelitas demoliram milhares de estruturas pertencentes a palestinianos nos Territórios Palestinianos Ocupados, incluindo um número estimado em 2000 casas em Jerusalém Oriental. Durante o primeiro trimestre de 2008, as autoridades israelitas demoliram 124 estruturas.
206. Apesar da proibição pela lei humanitária internacional (LHI), Israel tem aplicado desde 1967 as suas leis domésticas em todos os Territórios Palestinianos Ocupados.
207. O estatuto civil de dois níveis definido pela lei israelita, que favorece os “nacionais judeus” (le'om yehudi) em relação aos que detêm a cidadania israelita (ezrahut), tem sido um tema de preocupação ao abrigo da Convenção Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, em particular as formas de discriminação levadas a cabo pelas agências para-estatais de Israel (a Organização Sionista Mundial/Agência Judaica, o Fundo Nacional Judeu e os seus afiliados), que dominam o uso da terra, da habitação e do desenvolvimento. O Comité de Direitos Económicos, Sociais e Culturais também tem reconhecido que a aplicação por Israel de uma “nacionalidade judaica” distinta da cidadania israelita institucionaliza uma discriminação que prejudica todos os palestinianos, e em particular os refugiados.
1674. A Missão é de opinião que a operação militar de Israel em Gaza entre 27 de Dezembro de 2008 e 18 de Janeiro de 2009 e o seu impacto não podem ser entendidos e avaliados isoladamente de desenvolvimentos anteriores e subsequentes a ela. A operação encaixa na continuação de políticas que visam atingir os objectivos políticos de Israel em relação a Gaza e aos Territórios Palestinianos Ocupados como um todo. Muitas dessas políticas baseiam-se ou resultam em violações da lei dos direitos humanos e da lei humanitária internacional. Os objectivos militares, tal como declarados pelo governo de Israel, não explicam os factos averiguados pela Missão, nem são congruentes com os padrões identificados pela Missão durante a investigação.
1675. A continuidade é mais imediatamente evidente na política de bloqueio que precedeu as operações e que, na perspectiva da Missão, constitui um castigo colectivo infligido intencionalmente pelo Governo de Israel aos habitantes da Faixa de Gaza. Quando as operações começaram, a Faixa de Gaza tinha estado durante quase três anos sob um severo regime de impedimentos e restrições à movimentação de pessoas, bens e serviços. Isso incluía necessidades vitais básicas como alimentos e materiais médicos e produtos necessários para a condução normal da vida diária como combustíveis, electricidade, artigos escolares e materiais de construção e reparação. Essas medidas foram impostas pelo Estado de Israel supostamente para isolar e debilitar o Hamas após a sua vitória eleitoral, devido à percepção de continuação de ameaça à segurança de Israel que isso representava. Esse efeito foi conjugado com a retenção da ajuda financeira e outra de alguns doadores com argumentos semelhantes. Juntando ainda mais sofrimento à já difícil situação na Faixa de Gaza, os efeitos do bloqueio prolongado não pouparam nenhum aspecto da vida dos habitantes de Gaza. Antes da operação militar, a economia de Gaza já se tinha esgotado, o sector da saúde estava sob pressão, a população tinha ficado dependente da ajuda humanitária para a sua sobrevivência e a condução da sua vida diária. Os homens, mulheres e crianças há muito tempo que sofriam psicologicamente com a pobreza, a insegurança e a violência e um confinamento forçado a um território altamente sobrepovoado. A dignidade dos habitantes de Gaza tinha sido severamente corroída. Era esta a situação na Faixa de Gaza quando as forças armadas israelitas desencadearam a sua ofensiva em Dezembro de 2008.
1676. Uma análise das modalidades e do impacto das operações militares de Dezembro-Janeiro também as situa, na perspectiva da Missão, numa continuidade com várias outras políticas israelitas pré-existentes em relação aos TPO [Territórios Palestinianos Ocupados]. O progressivo isolamento e separação da Faixa de Gaza da Cisjordânia, uma política que começou muito antes e que foi consolidada em particular com a imposição de apertados impedimentos e restrições aos movimentos e por fim pelo bloqueio, estão entre as mais aparentes. Várias medidas adoptadas por Israel na Cisjordânia durante e após as operações militares em Gaza também aprofundaram ainda mais o controlo de Israel sobre a Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental, e apontam para uma convergência de objectivos com as operações militares em Gaza. Entre essas medidas estão o aumento da expropriação de terras, as demolições de casas, as ordens de demolição, as autorizações de construção de casas nos colonatos, maiores e mais formalizadas restrições de acesso e de movimentos aos palestinianos, novos e mais rígidos procedimentos para os residentes da Faixa de Gaza mudarem a sua residência para a Cisjordânia.
Natureza, objectivos e alvos das operações militares israelitas em Gaza
1677. Palestinianos e israelitas com quem a Missão se reuniu acentuaram repetidamente que as operações militares levadas a cabo por Israel em Gaza de 27 de Dezembro de 2008 a 18 de Janeiro de 2009 foram qualitativamente diferentes de qualquer outra acção militar anterior de Israel nos TPO. Apesar das duras condições que há muito tempo têm prevalecido na Faixa de Gaza, vítimas e observadores de há muito tempo declararam que as operações não tiveram precedentes quanto à sua severidade e que as suas consequências irão permanecer durante muito tempo.
1678. Quando a Missão fez a sua primeira visita à Faixa de Gaza no início de Junho de 2009, já tinham passado quase cinco meses desde o fim das operações militares israelitas. Os efeitos devastadores das operações na população eram, porém, inequivocamente manifestos. Além da visível destruição de casas, fábricas, poços, escolas, hospitais, esquadras de polícia e outros edifícios públicos, a visão de famílias, incluindo velhos e crianças, ainda a viver entre os escombros das suas antigas habitações – não era possível nenhuma reconstrução devido à continuação do bloqueio – era evidência do impacto prolongado das operações sobre as condições de vida da população de Gaza. Os relatos do trauma sofrido durante os ataques, da tensão devida à incerteza sobre o futuro, da dureza da vida e do medo de mais ataques, apontam para efeitos de longa duração menos tangíveis mas não menos reais.
1680. As operações militares em Gaza foram, segundo o Governo israelita, inteira e extensivamente planeadas. Embora o Governo israelita tenha tentado retratar as suas operações como sendo essencialmente uma resposta a ataques de rockets, exercendo o seu direito à autodefesa, a Missão considera que o plano foi dirigido, pelo menos em parte, contra um alvo diferente: os habitantes de Gaza no seu todo.
1681. A este respeito, as operações foram de promoção de uma política global que visa punir a população de Gaza pela sua capacidade de resistência e pelo seu aparente apoio ao Hamas, e provavelmente com o objectivo de impor uma alteração desse apoio. A Missão considera que esta posição se baseia firmemente em factos, tem em consideração o que viu e ouviu no terreno, o que leu nos depoimentos de soldados que participaram nessa campanha e o que ouviu e leu de antigos e actuais oficiais militares e líderes políticos que a Missão considera serem representativos do pensamento que deu forma à política e à estratégia das operações militares.
1683. A este respeito, a Missão reconhece que nem todas as mortes constituem violações da lei humanitária internacional. O princípio da proporcionalidade reconhece que, em certas condições rígidas, acções que resultem na perda de vidas civis podem não ser ilegítimas. O que torna difícil a aplicação e avaliação da proporcionalidade em relação a muitos dos acontecimentos investigados pela Missão é que os actos das forças israelitas e as palavras de líderes políticos e militares antes e durante as operações indicam que, globalmente, elas se basearam numa política deliberada de força desproporcionada dirigida não ao inimigo mas à “infra-estrutura de apoio”. Na prática, isto parece querer dizer a população civil.
1684. O momento do primeiro ataque israelita, às 11:30 de um dia de semana, quando as crianças regressavam da escola e as ruas de Gaza estavam abarrotadas de pessoas que faziam a sua vida diária, parece ter sido escolhido para criar a maior perturbação e o pânico generalizado entre a população civil. O tratamento de muitos civis, detidos ou mesmo mortos quando tentavam render-se, é uma manifestação da forma em que as regras efectivas de compromisso, os procedimentos operacionais padrão e as instruções dadas às tropas no terreno parecem ter sido enquadradas de forma a criarem um ambiente em que a consideração devida pelas vidas civis e a dignidade humana básica foram substituídas pelo desrespeito pelas normas básicas da lei humanitária internacional e dos direitos humanos.
1689. Aliado à sistemática destruição da capacidade económica da Faixa de Gaza, também parece ter havido um ataque à dignidade das pessoas. Isso foi evidente não só na utilização de escudos humanos e nas detenções ilícitas por vezes em condições inaceitáveis, mas também na vandalização de casas que estavam ocupadas e na forma como as pessoas eram tratadas quando entravam em suas casas. As pinturas nas paredes, as obscenidades e muitas vezes as frases racistas, tudo isto constitui uma imagem global de humilhação e desumanização da população palestiniana.
1690. As operações foram cuidadosamente planeadas em todas as suas fases. Opiniões e conselhos legais foram obtidos ao longo das fases de planeamento e, a certos níveis operacionais, durante a campanha. Segundo o Governo de Israel, não foi feito quase nenhum erro. É nestas circunstâncias que a Missão conclui que o que aconteceu em pouco mais de três semanas no final de 2008 e início de 2009 foi um ataque deliberadamente desproporcionado, concebido para punir, humilhar e aterrorizar a população civil, diminuir radicalmente a sua capacidade económica local, tanto de trabalho como de se sustentar a si própria, e para lhe impor um sempre crescente sentimento de dependência e vulnerabilidade.