Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 23 de Março de 2009, aworldtowinns.co.uk

“Disparar e chorar” – Soldados israelitas revelam crimes de guerra

“É isso que é tão bom, supostamente, acerca de Gaza. Vê-se uma pessoa numa estrada... e pode-se pura e simplesmente disparar sobre ela”, relatou o soldado Aviv, descrevendo os sentimentos dominantes no exército israelita.

Soldados formados numa escola militar israelita tinham vindo prestar depoimentos sobre as suas recentes experiências de combate em Gaza, onde tinham sido encorajados e muitas vezes ordenados a assassinar civis.

Aviv continuou: “Um dos nossos oficiais, comandante de companhia, viu uma pessoa a chegar a numa estrada, uma mulher, uma mulher idosa. Ela estava muito longe, mas a uma distância tal que se podia abater quem aí estivesse. Se ela era suspeita ou não – não sei. Por fim, ele mandou gente para o telhado, para a abaterem com as suas armas.”

Os soldados reuniram-se a 13 de Fevereiro no Colégio Académico Ornim, em Kiryat Tivon, um colonato israelita perto de Haifa. O objectivo dessa escola é treinar os futuros soldados antes do seu serviço militar. Muitos dos seus diplomados assumem posições de comando quando chegam ao exército. Alguns dos depoimentos que os soldados prestaram nessa reunião foram publicados no boletim da escola com a data de 18 de Março. Partes editadas dos mesmos foram reveladas ao mundo durante os dias seguintes pelos jornais israelitas Haaretz e Maariv, bem como pela Agência Noticiosa McClatchy, com sede nos EUA.

Aviv: “Eu sou comandante de brigada de uma companhia que ainda está a treinar, a Brigada Givati. Entrámos num bairro na parte sul da Cidade de Gaza. Globalmente, isso foi uma experiência especial. Durante o treino, esperamos pelo dia em que entraremos em Gaza e por fim não é realmente como eles dizem que é. É mais assim: chegamos, tomamos uma casa, expulsamos os moradores e instalamo-nos. Ficámos numa casa durante cerca de uma semana.”

“Perto do fim da operação houve um plano para irmos a uma zona muito densamente povoada dentro da própria Cidade de Gaza. Nas reuniões preparatórias, começaram a falar-nos de ordens para abrirmos fogo dentro da cidade porque, como se sabe, eles usam um enorme poder de fogo e matam um elevado número de pessoas ao longo do caminho, de forma a não sermos feridos e a que eles não dispararem sobre nós.”

“A princípio, a acção especifica era entrar numa casa. Deveríamos entrar com um carro blindado chamado Achzarit [que quer dizer, literalmente, Cruel] de forma a rebentarmos com a porta inferior, começarmos a disparar lá para dentro e depois... Eu chamo a isto assassinato... De facto, deveríamos subir andar a andar e – qualquer que fosse a pessoa que avistássemos – deveríamos disparar. A inicio, perguntei-me: Qual é a lógica disto?”

“Lá de cima, eles disseram que era aceitável, porque qualquer pessoa que permanecesse no sector e dentro da Cidade de Gaza seria na realidade um condenado, um terrorista, porque não tinha fugido. Eu realmente não percebi: por um lado, eles de facto não tinham nenhum lugar para onde fugir mas estavam a dizer-nos, por outro, que eles não tinham fugido, pelo que era culpa deles... Por fim, a especificação envolvia entrarmos numa casa com megafones e dizermos [aos moradores]: ‘Saiam, todos para fora, têm cinco minutos, saiam de casa, quem não sair será morto’.”

“Dirigi-me aos nossos soldados e disse-lhes: ‘As ordens mudaram. Entramos na casa, eles têm cinco minutos para fugir, verificamos individualmente cada pessoa que saia para vermos se não tem nenhuma arma e depois começamos a entrar na casa, andar a andar, para a limparmos... Isto significa entrar na casa e abrir fogo sobre tudo o que se mexer, atirando uma granada, todas essas coisas.’ Então houve um momento muito aborrecido. Um dos meus soldados veio até mim e perguntou-me: ‘Porquê?’ Eu disse: ‘O que é que não é claro? Nós não queremos matar civis inocentes.’ E ele: ‘Yeah? Qualquer pessoa que lá esteja é um terrorista, isso é um facto conhecido.’ E eu disse: ‘Você acha que as pessoas realmente virão a correr para fora? Ninguém vai correr para fora.’ E ele diz: ‘Isso é claro’ e então os companheiros dele juntaram-se-lhe: ‘Nós temos que assassinar qualquer pessoa que lá esteja. Yeah, qualquer pessoa que está em Gaza é um terrorista.’ e todas as outras coisas com que eles enchem as nossas cabeças na comunicação social... Eles acham que dentro de Gaza estão autorizados a fazer tudo o que quiserem, a demolir as portas das casas sem qualquer razão, a não ser por ser cool.”

Quando Aviv descreveu o assassinato da mulher idosa, alguns dos outros soldados na reunião defenderam isso. “Essa mulher, não se sabia quem ela era... Não deveria lá estar.” Um outro acrescentou: “Mesmo antes de entrarmos, o chefe de batalhão deixou-nos claro que uma lição muito importante da Segunda Guerra do Líbano era a forma como as IDF [Forças Israelitas de Defesa, o exército israelita] entravam – com muito poder de fogo. O objectivo era proteger as vidas dos soldados com o poder de fogo. Nessa operação, as perdas das IDF foram realmente ligeiras e o preço pago foi que muitos palestinianos foram mortos. O objectivo era proteger as vidas dos soldados com o poder de fogo.”

Um soldado chamado Ram explicou melhor o que isso significa na prática: “Eu estou numa companhia de operações da Brigada Givati. Depois de termos entrado nas primeiras casas, havia uma casa com uma família lá dentro. A entrada foi relativamente calma. Não abrimos fogo, apenas gritámos para que toda gente descesse. Metemo-los num quarto e saímos da casa, voltando a entrar nela por outro lado. Alguns dias depois de termos entrado, recebemos ordens para libertarmos a família. Tínhamos tomado posições lá em cima. No telhado, havia uma posição de atirador de precisão. O chefe de pelotão deixou a família sair e disse-lhes que fossem para a direita. Uma mãe e as suas duas crianças não perceberam e foram para a esquerda, mas eles esqueceram-se de dizer ao atirador no telhado que as tinham deixado sair, que estava tudo bem e que ele deveria suspender o fogo, mas ele... ele fez o que era suposto ter feito, seguindo as suas ordens.”

Pergunta da audiência: “A que distancia foi isso?”

Ram: “Entre 100 e 200 metros, algo assim. Elas tinham saído da casa que tinha um atirador no telhado, avançaram um pouco e de repente ele viu-as, gente a andar numa zona em que era proibido andar. Acho que ele não se sentiu muito mal acerca disso porque, afinal de contas, no que lhe diz respeito, ele tinha feito o seu trabalho de acordo com as ordens que tinha recebido. E a atmosfera em geral, do que eu entendi da maioria dos meus homens com quem falei... Não sei como descrever isto... As vidas dos palestinianos, digamos, é algo muito, muito menos importante que as vidas dos nossos soldados. No que lhe diz respeito, eles podem justificar isso dessa forma.”

Os soldados “colocaram à nossa frente um espelho muito desagradável”, disse um oficial israelita ao Haaretz quando lhe pediram para fazer um comentário sobre a publicação dessas histórias. O seu testemunho, pelo menos a parte que veio a público, não revela a magnitude dos crimes israelitas em Gaza – o Centro Palestiniano para os Direitos Humanos diz que mais de dois terços dos 1300 mortos na ofensiva de Israel em Janeiro eram civis, incluindo 288 crianças (com menos de 18 anos) e 121 mulheres, contra dez mortos israelitas, a maioria dos quais soldados mortos por engano pelos seus próprios camaradas. Nem esses soldados poderiam descrever toda a extensão da ocupação israelita em que os seus soldados mataram quase 5000 palestinianos, quase 1000 dos quais eram crianças e adolescentes e cerca de metade eram civis, durante nove anos, ainda antes da mais recente invasão de Gaza. Mas a reunião revelou algo sobre as instruções que são dadas aos soldados e ainda mais sobre o estado de espírito oficialmente instigado entre eles.

Outras histórias que surgiram na imprensa israelita durante a última semana atestam isso mesmo e ainda pior. Uma nota manuscrita em hebraico encontrada numa casa palestiniana dizia: “Regras de Compromisso: Abrir fogo mesmo em caso de socorro”. O Centro Palestiniano para os Direitos Humanos disse ao Haaretz que a casa se situava no cimo de uma colina perto do campo de refugiados de Jabalaya, tomado pelo exército israelita como base para os seus atiradores furtivos e outros ataques aos habitantes da zona. O documento, tal como foi avaliado por fontes não oficiais do exército israelita, parece ter sido escrito por um comandante de pelotão ou talvez de companhia, muito provavelmente com base em instruções específicas dos seus superiores. Os soldados israelitas dispararam sistematicamente sobre o pessoal palestiniano e os médicos da Cruz Vermelha, tornando impossível socorrer feridos e evacuar mortos antes de a ofensiva ter terminado. “O documento encontrado na casa fornece uma prova escrita de que os comandantes das IDF ordenaram às suas tropas que atirassem sobre o pessoal de socorro”, escreveu um correspondente do Haaretz a 22 de Março. A nota também aconselhava os soldados israelitas a defecarem dentro das casas palestinianas que tomassem. Os testemunhos dos soldados na reunião acima referida mencionam muitas vezes que lhes disseram para destruírem o conteúdo das casas, por exemplo atirando tudo pelas janelas fora. Os palestinianos que regressaram encontraram fezes nos seus haveres pessoais, fotografias de família cuspidas e graffitis racistas nas suas paredes.

Estas denúncias no Haaretz e noutros sítios precisam de ser contextualizadas. O director da academia militar onde os soldados se reuniram é um oficial de longa data do exército israelita que há alguns anos atrás entrou em conflito com os fundamentalistas religiosos de Israel. De facto, o seu programa de treino de futuros membros do exército israelita tem o nome de Yitzhak Rabin, o ex-primeiro-ministro israelita (e ex-general) assassinado em 1995 por um israelita apenas por achar que Rabin era demasiado brando com os palestinianos. Muitos dos testemunhos prestados na escola diziam respeito ao papel dos rabis (a liderança religiosa) do exército israelita que diziam aos soldados que eles estavam a fazer uma guerra santa em que “era preciso lutarmos para nos libertarmos dos gentios [os não-judeus] que estão a interferir com a nossa conquista da terra”, como disse um soldado nesse fórum.

O conflito entre as forças religiosas extremas e os sionistas laicos está a exaltar toda a sociedade israelita. Ao mesmo tempo que noticiavam o fórum dos soldados, as páginas do Haaretz também se enchiam com o debate sobre a exigência dos ultra-ortodoxos de haver autocarros separados para homens e mulheres e de um incidente recente – de um tipo bastante comum ultimamente – em que os fundamentalistas judeus espancaram uma mulher que se recusou a mudar para a parte de trás de um autocarro onde supostamente se deveriam sentar as mulheres, afastada dos homens. Isto é muito perturbador para aqueles sionistas que querem que Israel seja uma sociedade moderna e ocidental.

Mas este conflito concentra-se particularmente nas forças armadas, onde há academias militares que competem dos dois lados por obterem influência e posições de comando para os seus graduados. Porém, crê-se comummente que as forças laicas estão a perder terreno devido a um facto muito simples: apesar de apenas cerca de um em cada cinco israelitas se identificar a si próprio como parte dessa corrente “religiosa nacional”, esta é cada vez mais a coluna vertebral do corpo de oficiais do exército israelita e dos soldados, para além de constituir o grosso dos seus vigilantes antipalestinianos oficiosos. Israel não pode sobreviver enquanto estado judeu sem eles e sem o seu espírito de abnegação ao serviço da sua causa. Isto também se reflecte na política israelita: Benjamim Netanyahu, o líder do partido laico Likud, está a aproximar-se dos representantes dos partidos ultra-ortodoxos, na sua tentativa de formar um novo governo.

Os que prefeririam dar uma face humana à arruaça sionista não se conseguem livrar desses fanáticos religiosos e da sua tão ruidosamente proclamada doutrina de superioridade racial aberta. De facto, os lamentos que rodeiam os testemunhos desses soldados, de o exército israelita ter perdido a sua “superioridade” moral, não passam de uma ilusão nostálgica. Independentemente do que possa ter pensado estar a fazer cada um dos membros individuais desse exército, o objectivo principal das “Forças de Defesa Israelitas” tem sido afastar ou matar os palestinianos, desde o próprio nascimento do estado de Israel, na limpeza étnica sionista de 1948.

O Haaretz ressuscitou uma expressão tornada popular em anteriores guerras israelitas para se referir aos testemunhos dos soldados: “disparar e chorar” – cumprir ordens e depois chorar sobre o que se fez. Para esse jornal e para a corrente que representa, o sionismo perdeu alguma da autoridade moral de que antes desfrutava entre algumas pessoas. Esta também foi a razão por que o governo israelita anunciou recentemente planos para enviar ao estrangeiro escritores, artistas e outros intelectuais para que dêem às pessoas uma imagem da sociedade sionista diferente da “espelhada” por estes soldados. Mas também há um certo consenso nessa sociedade: podem chorar se quiserem, desde que continuem a disparar.

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