Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 4 de fevereiro de 2018, aworldtowinns.co.uk
As armas e os alvos do debate sobre os “campos da morte polacos”
O parlamento da Polónia aprovou uma lei que criminaliza a utilização da expressão “campos da morte polacos” quando se refere a Auschwitz e a outros campos de concentração situados na Polónia, onde cerca de três milhões de judeus e provavelmente cerca de três milhões de outras pessoas foram assassinadas durante a II Guerra Mundial. Esta lei é um grave passo na marcha da Polónia para a implementação do fascismo. Ao mesmo tempo, a condenação generalizada desta lei foi marcada por falsificações e hipocrisia em grande escala. Os governos dos EUA, de Israel e outros condenaram-na apenas para defenderem os seus próprios objetivos mortíferos.
A lei, que está agora à espera da assinatura do presidente polaco, ameaça com até três anos de prisão quem “acusar, publicamente e contra os factos, a nação polaca, ou o estado polaco, de ser responsável ou cúmplice dos crimes nazis cometidos pelo Terceiro Reich”. As pessoas envolvidas em “atividades artísticas ou científicas” podem ficar isentadas. Mas o destino delas estará dependente de um sistema judicial cada vez mais sob o controlo do partido governamental Lei e Justiça (PiS), cujo Ministro do Interior notoriamente descreveu uma manifestação neonazi em novembro passado com dezenas de milhares de pessoas como uma “bela visão”.
A lei é uma provocação, convidando deliberadamente a ser criticada pela União Europeia e por Israel, de maneira a retratar a Polónia como vítima. Foi cuidadosamente redigida para resistir a desafios legais. Considerada de uma maneira estreita e tomada fora do contexto, não distorce os factos. É incontestável que não houve um estado polaco no período do Holocausto. Ao contrário de outros países que foram invadidos ou dominados pela Alemanha durante a guerra, como a Hungria, a França, a Noruega, etc., os nazis esmagaram o estado então existente e governaram a Polónia sem um governo colaboracionista local. Eles consideravam os polacos e todos os eslavos uma “raça” inferior, apenas ligeiramente melhor que os judeus. Auschwitz-Birkenau e os outros campos da morte em território polaco foram operações completamente alemãs.
Em relação à parte sobre a “nação polaca”, embora possa ser debatível em tribunal, o uso da palavra “nação” é uma mistificação (insinuando que os polacos que ajudaram os nazis não devem ser considerados verdadeiramente polacos) e deixa de lado os seguintes factos essenciais.
O antissemitismo desempenhou um papel fundamental na construção da identidade da Polónia como nação católica – uma identidade reavivada pelo seu governo atual. Um pouco como aconteceu com a supremacia branca nos EUA, a exclusão e a opressão dos judeus estavam incrustadas na estrutura da sociedade polaca. Houve polacos comuns a cometer violência em massa contra os judeus desde muito antes da invasão nazi, durante a ocupação e mesmo depois da derrota do exército ocupante alemão.
Os relatos de judeus que sobreviveram ao genocídio descrevem o dilema de precisarem desesperadamente de ajuda para se esconderem ou fugirem, e mesmo assim não poderem confiar nos polacos à sua volta. O problema não era que todos os polacos não judeus fossem antissemitas, mas que normalmente não havia nenhuma maneira de saber antecipadamente o que faria um dado polaco. Muitos denunciaram os judeus aos nazis, alguns deles por medo, outros por preconceito ou ganância. Num caso notório (Jedwabne, 1941), mais de trezentos judeus foram agrupados, fechados num celeiro e queimados até à morte pelos seus próprios vizinhos sem qualquer intervenção nazi.
Contudo, muitos polacos arriscaram as vidas deles ou morreram para defenderem as vítimas dos nazis. Por exemplo, a revolta dos judeus aprisionados pelos nazis no Gueto de Varsóvia não teria conseguido manter-se durante tanto tempo quanto se manteve sem as armas e os abastecimentos médicos contrabandeados do exterior por algumas forças clandestinas polacas e por cidadãos comuns. Houve famílias polacas que acolheram evadidos do gueto nos seus apartamentos, cuidando deles até eles poderem recuperar da fome, das doenças ou dos ferimentos e poderem continuar a fuga deles. Se os alemães os encontrassem na casa de alguém, todos os membros da família e frequentemente o porteiro do edifício seriam abatidos. Para dar um exemplo, a família Iwanska, que vivia no lado de fora dos muros do gueto, tinha a seu cargo o esgoto que foi um importante canal para as pessoas e os abastecimentos. Eles também instalaram uma enfermaria no seu apartamento. Os pais só souberam que o seu jovem filho se tinha juntado à resistência judia quando encontraram o cadáver dele entre os corpos de outros combatentes caídos que estavam a ajudar a recolher para os enterrarem. Ao mesmo tempo que absolve unilateralmente a “nação polaca”, o governo polaco não homenageia esses heróis.
É correto atribuir o essencial da culpa aos nazis. Mas há muita hipocrisia da parte dos reacionários que criticam a Polónia por tudo isto. Entre os fundadores e os líderes iniciais do atual estado alemão estiveram muitas pessoas que foram cúmplices do regime nazi. Além disso, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha recusaram-se a agir para impedir o funcionamento dos campos da morte. Os sobreviventes de Auschwitz relataram o seu sentimento de total abandono quando viam os bombardeiros britânicos e norte-americanos a sobrevoá-los para atingirem alvos considerados estratégicos para os objetivos de guerra dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha. Esses objetivos não incluíam salvar vidas através da destruição do sistema de vias-férreas que levavam as pessoas para a morte a um ritmo de dezenas de milhares por dia. Ao ignorar estes factos, a maior parte da condenação internacional da Polónia por esta estar a evitar a responsabilidade pelo genocídio é profundamente desonesta e serve os seus próprios interesses.
A posição do governo polaco em relação ao Holocausto é o oposto de “Nunca Mais”. O objetivo desta lei é apagar o quadro e começar tudo de novo, exaltando a “nação polaca” – a “Polónia pura, Polónia branca”, como gritaram os manifestantes neonazis em novembro – polindo a imagem do fascismo católico que é a sua ideologia e abraçando apelos a que desta vez haja um “Holocausto muçulmano”. A crítica a este regime por distorcer a história não pode evadir a questão de porque é que isto está a acontecer agora. Além disso, a Polónia não pode ser tratada como apenas um caso raro, intrínseca e unicamente defeituoso. O seu governo está muito consciente do seu papel como ponta-de-lança da corrente fascista na Europa, agora no poder na Ucrânia, na Polónia, na Hungria, na Eslováquia e na Áustria e influenciando fortemente as “principais correntes políticas” na Alemanha, na França, na Holanda, na Itália e noutros países, incluindo a Grã-Bretanha. De uma maneira perversa, o governo de Trump juntou-se às críticas a esta lei polaca para defender o seu próprio programa e ideologia fascistas. Tal como a própria nova lei, isto requer uma explicação e um contexto.
Trump tem ligações particularmente próximas ao governo polaco. A primeira visita ao estrangeiro dele foi a Varsóvia onde, ao contrário dos anteriores presidentes norte-americanos e outros chefes de estado, ele não cumpriu a formalidade de visitar Auschwitz. Os polacos entenderam o discurso dele apelando a que eles “defendam com a vossa própria vida” a batalha “pela família, pela liberdade, pelo país e por Deus” como um encorajamento ao projeto fascista. Por que iria o regime norte-americano, encabeçado por uma pessoa que ficou infamemente conhecida por dizer que há “pessoas boas” entre os nazis e outros supremacistas brancos, ficar aborrecido com esta nova lei?
A razão foi revelada pelo seu vice-presidente Mike Pence num discurso no Dia da Recordação do Holocausto, o aniversário da libertação de Auschwitz, por volta do mesmo período em que o parlamento da Polónia aprovava o projeto de lei. Pence, que se autoproclama católico evangélico, defendeu abertamente a visão fundamentalista religiosa partilhada pela “base” evangélica de Trump no seu conjunto, santificando o programa de Trump para um país fascista que procura ser “novamente grandioso” a nível mundial mesmo que à custa de uma guerra nuclear e do massacre genocida de milhões de pessoas, a começar pelos coreanos. Estes “sionistas cristãos”, como muitos deles se chamam a si mesmos, acreditam que estamos a entrar no “fim dos tempos” da história, a segunda vinda de Cristo, a acontecer em breve quando os judeus tomarem toda a cidade de Jerusalém e o aceitarem como seu salvador. (Nesse momento, os judeus que não se converterem ao cristianismo serão consagrados às chamas eternas como todos os outros não-crentes.) Esta ideologia, com as guerras apocalípticas a que dá as boas-vindas, não é menos potencialmente genocida nas suas implicações que o nazismo.
Claro que, até esse dia, estas pessoas e o seu führer Donald Trump irão apoiar o estado de Israel, um posto avançado chave que é necessário para o projeto norte-americano de esmagamento do mundo. As variantes cristãs e outras do fascismo e o sionismo estão destinados a ficar enredados em conflitos doutrinais, mas estão a celebrar um matrimónio feito no inferno. Os dirigentes israelitas criticaram a lei polaca por ela criminalizar o debate político e histórico. Mas quais são as hipóteses de este argumento ser aplicado ao seu próprio governo por criminalizar o debate sobre as origens de Israel, construído sobre a expulsão e subjugação dos palestinos!? E como podem os políticos israelitas repreender a Polónia na base da liberdade de expressão quando eles próprios tornaram recentemente ilegal que qualquer pessoa em qualquer ponto do mundo apoie o boicote ao estado sionista? (Uma posição partilhada pelos EUA e pela França.)
As pessoas precisam de perceber o que está a acontecer com estes debates supostamente “históricos”. A questão não é que a história necessariamente se repete, nem que podemos compreender hoje o nosso mundo através da procura de analogias do passado. Mas os acontecimentos de memória recente mostram o que poderia acontecer – que tipo de coisas que num certo momento parecem inconcebíveis podem, à medida que as contradições se agravam, vir a acontecer. Olhando para os objetivos por trás do debate “histórico” de hoje, podemos ver para onde a ascensão do fascismo poderá levar a humanidade. É assim que a história nos julgará – e é isso que deveria determinar a nossa ação.