Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 21 de Fevereiro de 2005, aworldtowinns.co.uk
A morte de Rafik Hariri e as ambições dos EUA no Médio Oriente
Os acontecimentos após o assassinato do antigo primeiro-ministro libanês Rafik Hariri tornaram claro que os EUA fixaram as suas miras no regime sírio bem como no do Irão. Os EUA estão a apostar na destruição do actual estado das coisas na região para depois poderem juntar as peças. Trata-se de uma jogada arriscada de uma amplitude que normalmente não é vista fora do contexto de uma guerra mundial.
Ao mesmo tempo que a Secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, dizia ao Congresso dos EUA, “Deixamos muito claro que não sabemos quem é responsável pelo atentado”, Washington retirou o seu embaixador na Síria, numa clara acusação. De facto, os EUA já tinham adoptado uma política de visar a Síria para uma “mudança de regime” muito antes desta morte.
A Síria – ou alguns sírios – podem ter estado por trás da morte de Hariri, mas há outros suspeitos.
Depois da morte de Hariri, as forças anti-sírias decidiram torná-lo no seu símbolo. Contudo, a sua relação com a Síria durante a sua vida foi complicada. Ao longo dos seus muitos anos como primeiro-ministro libanês, ele nunca foi um opositor do controlo da Síria sobre o país. A sua demissão em Setembro passado em oposição à extensão do mandato de governo do seu rival, o Presidente libanês Emile Lahou, que é universalmente considerado uma marioneta síria, foi contra os interesses da Síria. Mas como encarar o facto de a família de Hariri, ao mesmo tempo que rejeitava um enterro de estado e pedia aos representantes do governo libanês para não estarem presentes, dar as boas-vindas ao vice-presidente sírio Abdul Halim Khaddam, um velho amigo da família? O convidado mais proeminente foi o Presidente francês Jacques Chirac, o único chefe de estado presente. Os dois eram pessoalmente próximos e Hariri, cuja enorme fortuna o tornou num pilar da economia do Líbano, sempre foi considerado um amigo dos interesses franceses. A França juntou-se aos EUA na aprovação da Resolução 1559 do Conselho de Segurança da ONU no ano passado, que exigia que as tropas sírias deixassem o Líbano, mas Chirac tem-se oposto firmemente à campanha diplomática global dos EUA contra o regime sírio sobre o qual Paris sempre teve influência.
Se nos perguntarmos quem matou Hariri, não saberemos responder. Se nos perguntarmos quem beneficia com a sua morte, seja numa tentativa síria para manter a sua posição que saiu pela culatra ou qualquer outra coisa, a resposta é muito clara: beneficiam Israel e os EUA. Os perdedores são o regime sírio como um todo e, menos, a França.
É absurdo discutir que o apoio à independência do Líbano em relação à Síria, independentemente de ser uma causa justa ou não, joga um papel decisivo nas actuais posições dos EUA e da França. Os franceses separaram inicialmente o Líbano da Síria quando controlavam ambos os países depois da I guerra mundial, porque o queriam todo para eles. O Presidente Jimmy Carter dos EUA encorajou a invasão inicial do Líbano pela Síria em 1976 como uma maneira de restabelecer a estabilidade num país fronteiro ao principal aliado da América, Israel, e sobretudo para manter aí sob controlo o movimento palestiniano de resistência. Israel também invadiu o Líbano em 1978, e novamente em 1982, tomando Beirute ocidental e fechando os olhos aos massacres nos campos de refugiados palestinianos. A atitude da Síria para com Israel durante esse período só pode ser descrita como uma combinação de cumplicidade com os sionistas contra os palestinianos e uma concorrência pelo controlo do próprio Líbano. A ocupação do sul do Líbano por Israel durou até 2000. Ainda ocupa uma parte do Líbano, as Quintas de Shabaa. Quem, em todas essas manobras reaccionárias, alguma vez se preocupou com os direitos nacionais do Líbano?
A principal reclamação de Israel contra a Síria diz respeito ao Hezbollah, uma organização islâmica que surgiu como um movimento de resistência armado contra a invasão israelita. Israel quer esmagá-lo e esse tem sido um ponto de conflito entre os EUA e a Europa. Os EUA têm apoiado as exigências de Israel, insistindo com a ONU para que declare o Hezbollah como uma organização terrorista. A França tem bloqueado isso, argumentando que não faz nenhum sentido aplicar essa etiqueta a um movimento que tem uma dúzia de membros no parlamento libanês e é o governo de facto e o principal suporte económico do sul do Líbano. Durante os últimos cinco anos, o Hezbollah agiu de facto como uma força policial para impedir os palestinianos baseados no Líbano de atacarem Israel, de modo que os seus estimados mil combatentes não podem ser considerados uma ameaça à existência de Israel. Porém, o Hezbollah é um obstáculo maior ao controlo político israelita do sul do Líbano, incluindo a sua economia.
Os EUA já aplicaram sanções económicas contra a Síria. O seu objectivo imediato parece ser isolar completamente a Síria de outros países, em temos diplomáticos, económicos e de material militar. A morte de Hariri deu a Bush uma desculpa para exigir acção em nome da Resolução 1559 da ONU que tinha ficado definhadoramente por cumprir. É irónico ver o prazer de Bush a citar resoluções da ONU quando elas servem os interesses norte-americanos. Os EUA estiveram completamente contra a ONU e o direito internacional quando invadiram e ocuparam o Iraque. Além disso, os EUA têm apoiado desafiadoramente Israel contra as inúmeras resoluções da ONU que exigem a retirada dos territórios ocupados na guerra de 1967, incluindo os Montes Golã da Síria, bem como a Cisjordânia e a Faixa de Gaza.
Um artigo no Washington Post de 18 de Fevereiro salientou que, numa altura em que há pouco apoio internacional ao objectivo dos EUA de derrubar o regime sírio, os EUA ainda podem conseguir obter o apoio de outros países (como a França) na oposição à ocupação do Líbano pela Síria. Mas devemos compreender que uma retirada das tropas sírias do Líbano pode, de facto, precipitar o fim do regime do Presidente sírio, Bashar Assad. Isto foi explicado pelo embaixador britânico na Síria numa outra peça no Washington Post do dia seguinte. O artigo explica que os responsáveis superiores do Partido Baath que governa a Síria “têm significativos interesses económicos e políticos no Líbano. Muitos dos responsáveis com mais a perder de uma retirada pertencem aos serviços de segurança e informações da Síria, que têm um historial de agir sem ordens.”
O jornal norte-americano aponta isso como uma razão para o envolvimento da Síria na morte de Hariri não poder ser posto de lado e esses argumentos têm um peso real. Mas se eles forem verdadeiros, então também é verdade que, independentemente de quem tenha matado Hariri, a pressão dos EUA sobre a ocupação do Líbano pela Síria pretende ter um impacto para além das fronteiras do Líbano e golpear também no coração do regime sírio.
Isso é sublinhado pelo facto de o embaixador britânico estar a discutir abertamente como derrubar um regime junto do qual ele está acreditado. Na entrevista, ele diz que está a contar com a oposição anti-síria no parlamento libanês para dar esse golpe. O que ele não diz é que, dada a natureza da política libanesa, esse cenário eleitoral é improvável de acontecer a menos que muitos políticos sintam que estão a agir com a cobertura política dos EUA e que são apoiados de algum modo por armas norte-americanas. E essas armas pode ser que estejam em mãos israelitas.
A última peça do puzzle é o porquê de os EUA estarem tão interessados numa “mudança de regime” na Síria e esse é o ponto mais importante. É também uma peça desconcertante, a princípio, porque a Síria de Assad tem tentado arduamente chegar a um acordo com os EUA.
Os EUA não se podem queixar certamente das câmaras de tortura do seu regime, uma vez que já fizeram uso delas. Houve vários relatos na imprensa ocidental, incluindo a admissão por parte de responsáveis norte-americanos, relativamente à política dos EUA de “devolução” – entregando à Síria (e ao Egipto e a outros regimes) pessoas que suspeitam de agirem contra os seus interesses, para serem torturadas ou permanentemente afastadas. O caso mais famoso – que sobreviveu para o contar – é o do cidadão canadiano Maher Arar que foi detido pelo governo dos EUA durante uma escala no aeroporto de Nova Iorque e que desapareceu durante mais de um ano. De acordo com um relatório da Amnistia Internacional, os responsáveis norte-americanos levaram-no de avião para a Jordânia e depois fizeram-no chegar à Síria onde foi torturado por uma divisão dos serviços de segurança militar sírios, cujo trabalho habitual é fazer o mesmo a palestinianos. Depois de assinar uma confissão de ter estado no Afeganistão – que depois se provaria falsa – devolveram-no aos EUA, que neste caso o devolveram ao Canadá. Outros que foram raptados e arrastados para os calabouços sírios pelos EUA dizem que ouviam os seus torturadores falar inglês com sotaque norte-americano.
Um extenso artigo de Seymour Hersh publicado na edição de 18 de Julho de 2004 da revista The New Yorker parece ter recebido informação de agentes da CIA norte-americana que discordam da decisão do regime Bush de perseguir Assad. Descreve em detalhe o grau em que os serviços de informações sírios e norte-americanos trabalharam em conjunto contra as forças islâmicas que são o seu inimigo comum. A Síria não deu o mesmo apoio à invasão norte-americana do Iraque de 2003 que deu à guerra do Golfo de 1991 (quando até enviou tropas), dado que a actual situação lhe teria causado problemas políticos muito sérios. Mas, explica Hersh, Assad ainda continuou ansioso em abrir um “canal encoberto” através do qual poderia cooperar secretamente e negociar com Bush. O artigo argumenta que se a “guerra ao terror” ou o combate ao fundamentalismo islâmico realmente fossem as questões motrizes para o governo dos EUA, a recusa de Bush em abrir esse “canal encoberto” seria inexplicável. Hersh entrevistou Assad que prontamente disse: “Para nós,” o 11 de Setembro “foi uma boa oportunidade. A necessidade de cooperar era muito patente e era no nosso interesse. Também foi uma boa maneira de melhorar relações.”
Um ponto incómodo, segundo Hersh, foi a recusa da Síria em acabar com o seu apoio ao Hezbollah. Noutra entrevista, o ministro da informação do Líbano disse a Hersh que sem o Hezbollah as centenas de milhares de refugiados palestinianos que vivem nos campos do sul do Líbano poderiam ficar sem contenção. Uma passagem particularmente fascinante é quando Sayyid Hassan Nasrallah, líder do Hezbollah, “salientou que não estava à procura de um confronto com os Estados Unidos.” Quando Hersh lhe perguntou se ele aceitaria o tipo de solução para a questão palestiniana que Israel alega estar à procura, incluindo o abandono das reivindicações palestinianas sobre Jerusalém, Nasrallah disse: “Deixemos isso acontecer. Eu não diria O.K., eu não diria nada.”
Por que não aceitam os EUA aquilo que Hersh chama de “aposta síria”, um acordo com o regime de Assad? A resposta dada ultimamente por responsáveis norte-americanos anónimos à comunicação social é que “Assad não consegue cumprir”. Com isto, eles querem dizer que ao contrário do seu pai de quem herdou o poder em 2000, Bashar não consegue controlar as diversas forças que se confrontam dentro da classe dominante síria. Mas seria preciso mais que isso para explicar a inflexível agressividade dos EUA. Bush e os seus conselheiros parecem acreditar que a pressão externa pode causar o desmoronamento do regime, e que uma outra configuração política irá emergir que não só eliminará a Síria como o único potencial pólo árabe de oposição aos EUA e a Israel, com também diminuirá a influência da Europa e trará a Síria para debaixo de um controlo mais directo dos EUA.
Como os responsáveis norte-americanos nunca se cansam de salientar, as ligações entre a Síria, o Irão e algumas forças palestinianas são múltiplas. O Hezbollah é apoiado pelo Irão, mas também pela Síria. A Síria também dá refúgio à liderança do Hamas e de outras organizações palestinianas. O Irão deu apoio à Síria, sobretudo fornecendo-lhe petróleo barato mas também prometendo solidariedade política e militar. O Irão também tem ligações históricas aos políticos mulás xiitas do Iraque.
Essas organizações e vínculos reaccionários têm sido todos, até certo ponto, um factor de estabilidade no Médio Oriente. O Hamas, pelo menos até agora, está a apoiar os esforços de Israel para parar a Intifada; o Hezbollah representa o papel indicado acima; e o regime iraniano pressionou abertamente os seus contactos no Iraque para cooperarem com a ocupação dos EUA a que o Irão nunca se opôs em palavras ou actos. Mas o que os EUA procuram hoje no Médio Oriente não é preservar a antiga estabilidade das últimas décadas, mas obter o que eles esperam venha a ser todo um novo tipo de estabilidade que só pode ocorrer através de uma desordem violenta.
Depois da morte de Hariri, Bush declarou que “a Síria está fora de passo com o progresso que está a ser feito no Grande Médio Oriente.” Podemos acreditar nas suas palavras. Os conselheiros de política externa de Bush proclamam que os EUA devem e podem reconfigurar completamente o Médio Oriente – de facto, tornar todo o “Grande Médio Oriente”, de Marrocos ao Afeganistão, numa subsidiária neocolonial totalmente controlada e numa importante pedra do império mundial norte-americano. Desse ponto de vista, tudo começa a fazer sentido, de um modo perverso. Enfrentando sérias dificuldades – por exemplo no Iraque, onde a intervenção dos EUA ainda tem que atingir os seus objectivos – mas também verdadeiras oportunidades que lhe advêm de se encontrar de repente como a única superpotência do mundo, os EUA rejeitam a “aposta síria” e ofertas semelhantes da República Islâmica do Irão e em vez disso foram para o tudo ou nada. A julgar pelos seus actos e também pelas suas palavras, os governantes dos EUA acreditam que não podem parar com nada menos que o total controlo norte-americano do Médio Oriente, mesmo que isso signifique correr os riscos associados a uma desestabilização total, com consequências impossíveis de prever.