Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 18 de Junho de 2007, aworldtowinns.co.uk

Opinião: “O imperialismo norte-americano, o fundamentalismo islâmico e a necessidade de outro caminho”

Publicamos de seguida um excerto de um artigo assinado por Sunsara Taylor publicado no jornal Revolution/Revolución, voz do Partido Comunista Revolucionário, EUA (em inglês no n.º 91, 10 de Junho de 2007, revcom.us/a/091/iso-polemic-en.html, e em castelhano no n.º 92, 17 de Junho de 2007, revcom.us/a/092/iso-polemic-es.html). Trata-se de uma resposta a um artigo do Socialist Worker, uma publicação da Organização Socialista Internacional nos EUA (socialistworker.org).

Por Sunsara Taylor

À medida que se amontoam os crimes dos EUA contra a humanidade no Médio Oriente, é de tremenda importância que as pessoas nos EUA confrontem honestamente e se ergam à altura dos profundos desafios e responsabilidades que enfrentamos, fazendo com que esta situação acabe. Neste espírito, dei as boas-vindas ao texto de Hadas Thier e Aaron Hess no Socialist Worker de 20 de Abril de 2007, intitulado “Resistir à Islamofobia”, mesmo achando que os seus argumentos centrais não só estão errados, como são nefastos.

Não duvido que Thier e Hess se queiram opor às guerras norte-americanas de agressão e aos subsequentes ataques a muçulmanos, árabes e sul-asiáticos que vivem nos EUA. Mas eles acabam por estar a defender uma abordagem que não só não irá estar à altura dos actuais desafios de oposição à “cruzada” dos EUA, como não apresentam possibilidades novas e verdadeiramente libertadoras, aqui e no resto do mundo. Eles acabam nessa infeliz posição através do uso de uma lógica errada, uma metodologia deficiente e uma epistemologia (método para chegar à verdade) de distorção-das-realidades-desagradáveis.

Vejamos como isto é verdade.

“Resistir” cita George Bush a defender: “A guerra que hoje travamos é mais que um conflito militar. É a luta ideológica decisiva do século XXI. De um lado estão os que acreditam nos valores da liberdade e da moderação, no direito de todas as pessoas a falarem, venerarem e viverem em liberdade. Do outro estão os que se regem pelos valores da tirania e do extremismo.”

Depois, escrevem: “Infelizmente, algumas vozes na esquerda – mesmo em sectores radicais do movimento contra a guerra – aceitam essas mesmas condições.” Eles continuam, citando um artigo meu: “Cada vez mais, a humanidade está a ser confrontada com duas escolhas intoleráveis: a cruzada de Bush pelo império ou uma resposta fundamentalista islâmica reaccionária. (...) O governo Bush cometeu crimes a uma escala muito maior e é sem dúvida a maior ameaça à humanidade, (...) mas ambos são pesadelos totais. Ambos se reforçam e alimentam um ao outro e, à medida que crescem, esgotam o ar para respirar às forças laicas e progressistas deste país e de todo o mundo. (...) Centenas de milhões de pessoas – neste país e no resto do mundo – devem ser confrontadas com uma terceira opção, uma opção que recuse a escolha entre a cruzada McWorld e a Jihad reaccionária.”

Observando-as, estas duas posições não podiam ter menos em comum; Bush exalta a agressão imperialista norte-americana enquanto eu apelo a uma resistência suficientemente poderosa para acabar com ela. Mas é apenas ignorando esta diferença clara que Thier e Hess podem, em primeiro lugar, insistir de uma forma precipitada que a minha condenação do fundamentalismo islâmico assume as mesmas condições que as definidas pelo regime Bush e, em segundo lugar, evitar convenientemente ter que distinguir entre dois tipos muito diferentes de oposição aos actos dos EUA no Médio Oriente.

Face a uma guerra injusta no Iraque e no Afeganistão, tanto emergem as justas reivindicações das massas populares em geral que se opõem à ocupação e à ambição norte-americana de controlar toda a região, como emerge a oposição reaccionária e teocrática que reflecte os interesses de estratos obsoletos dentro desses países. A necessidade de apoiar as justas reivindicações populares não deve ser confundida com o apoio às forças fundamentalistas reaccionárias, nem a ideologia e o programa desses fundamentalistas devem ser comparados aos interesses das massas da região em geral.

“Obsoleto”: um termo científico e não um palavrão

Chamar essas forças fundamentalistas de “obsoletas” não é chamar-lhes nomes, nem um reflexo de alguma forma de “preconceito”, como se infere do artigo de Thier e Hess. “Obsoleto” e reaccionário referem-se ao conteúdo da sua própria versão específica de um programa muito opressivo para as massas populares desses países. E, a um outro nível, a expressão “estratos obsoletos” exprime as relações de classe envolvidas. Essas forças representam antigos estratos que governaram essas sociedades – não os interesses das massas populares.

Essas forças – e o programa que promovem (quaisquer que sejam as suas origens de classe individuais) – reflectem e advogam relações de classe “tradicionais”, em grande parte “de base feudal”, nesses países oprimidos. Alguns desses clérigos estão directamente ligados aos interesses dos grandes proprietários semifeudais. (Isso era verdade, por exemplo, no caso do Irão, que será discutido mais adiante.) Mas, em todo o caso, o seu programa é explicitamente uma defesa e um programa de reforço das relações “tradicionais” dessas sociedades. E o complexo padrão de cooperação e conflito que observamos entre essas forças e os imperialistas reflecte, em última análise, a complexa e contraditória relação entre o domínio imperialista desses países e o feudalismo. Em suma, os imperialistas dependem e “apoiam” essas velhas relações de opressão, ao mesmo tempo que as minam com novas e “modernas” formas de exploração que transformam e desfazem essas velhas relações.1

Thier e Hess contestam que se misture todos os fundamentalismos islâmicos e há, realmente, algumas diferenças entre as várias tendências islâmicas. Contudo, qualquer pessoa seriamente interessada em compreender a região e os factores ideológicos que aí estão a moldar os acontecimentos não pode ignorar o terrível facto de que há uma força motriz comum a essas tendências. Essa ideologia (o fundamentalismo religioso) assumiu a forma muito concreta de programa teocrático em vários países da região, apesar de algumas variações locais e mesmo dos conflitos dentro dessa tendência alargada. Nesta época, assumir como programa político um literalismo religioso de qualquer tipo é assumir um programa com todo um conteúdo obsoleto e opressivo – um conteúdo que vem das antigas sociedades de onde emergiram os textos religiosos. Ao impô-lo ao mundo moderno, o que se está a obter é o que vemos em todos os lugares onde o fundamentalismo obtém um ponto de apoio: um cruel sistema patriarcal e intolerante, guerras religiosas, “mortes de honra” e a promoção da ignorância não-científica e supersticiosa. O tratamento das mulheres é uma das questões mais fundamentais entre os próprios oprimidos e um critério para se saber como é que deve ser julgada qualquer luta de libertação. A perspectiva e o programa fundamentalistas que dizem que a interpretação literal dos textos religiosos deve ser “lei” ou a “lei suprema” – seja a lei da Xariá ou a lei bíblica judaico-cristã – vai contra os direitos fundamentais de liberdade de consciência e igualdade entre seres humanos, pelos quais se lutou e que são necessários para que haja uma sociedade decente no século XXI. Estas coisas – seja quando são impostas por sunitas na Arábia Saudita, por talibãs no Afeganistão, pelo Estado no Irão ou por movimentos de “oposição” – devem ser inequivocamente rejeitadas e não ignoradas, nem embelezadas ou apensas a políticas de identidade.

A envergadura do apoio a esse programa reaccionário fundamentalista desenvolveu-se na proporção directa dos gritantemente injustos ataques imperialistas aos povos desses países. Hoje em dia, a influência de formas muito nefastas e reaccionárias de fundamentalismo islâmico detém a iniciativa no Médio Oriente. A brutalidade da ocupação norte-americana e o vazio de uma autoridade legítima desencadeou uma violência religiosa sectária e o rápido crescimento de uma oposição à ocupação com uma perspectiva fundamentalista para o país. Os EUA, apesar de toda a sua conversa sobre irem em ajuda das mulheres oprimidas pelos talibãs, continuaram a apoiar e a instalar clérigos reaccionários e forças religiosas sectárias nos países que ocuparam. Tudo isto complica as tarefas dos movimentos laicos, progressistas, revolucionários e comunistas naquela região e requer um caminho diferente para as massas populares.

O fundamentalismo religioso não representa os interesses das massas

As variantes do fundamentalismo islâmico hoje predominantes no Médio Oriente, embora as suas raízes ideológicas tenham uma origem anterior, começaram a desenvolver-se como força política como resultado da II guerra mundial, quando as potências imperiais criaram nesses países novas formas de estruturas de estado semicoloniais e semifeudais que enfraqueceram o estatuto de muitos clérigos e outras relações tradicionais do poder feudal. Essas forças deram um importante salto nas duas últimas décadas, quando muitas foram conscientemente arquitectadas e promovidas pelos EUA como forma de oposição à influência da União Soviética na região. E esse salto também foi grandemente acelerado pelos efeitos de um golpe de estado na China pós-Mao que acabou com o papel da China como força inspiradora da mudança revolucionária no mundo, em conjunto com o fim da luta de libertação nacional no Vietname. Com efeito, o fundamentalismo islâmico emergiu num tipo de “vazio da liderança” nacionalista laica, revolucionária e comunista à escala mundial.

Os EUA têm tido uma relação contraditória com os movimentos fundamentalistas islâmicos – apoiando-os enquanto têm servido os seus interesses e tentando esmagá-los quando essas mesmas forças não servem os interesses dos EUA ou entram em conflito com eles. O declínio do colonialismo britânico e a ascensão do neocolonialismo nessa região estratégica chegaram frequentemente vestidos com trajes de “modernidade” impostos de cima – com a economia de mercado a empurrar milhões de camponeses para fora das suas terras, atirando-os para bairros de lata urbanos e para campos de refugiados. A penetração do investimento e do controlo neocolonial norte-americano também destruiu e minou os centros do poder semifeudal tradicional e a posição dos clérigos nessas sociedades. O despedaçar do antigo tecido social e o caos, o empobrecimento e a destruição e restruturação das economias dependentes, flexíveis a uma mais completa e brutal exploração e pilhagem desses países, também levaram ao desenvolvimento de respostas ideológicas (e não apenas económicas) à imposição do imperialismo vindo do “Ocidente”.

Tudo isso alimentou a ascensão de partidos e movimentos islâmicos que desafiaram as formas de poder e as alianças que o imperialismo norte-americano impôs em países específicos – e frequentemente esses movimentos político-religiosos reflectiam os interesses daqueles estratos obsoletos de clérigos e forças feudais cuja posição havia sido perturbada. A sua ideologia e o seu programa político reaccionários não representam os interesses do campesinato desesperado e deslocado nem das massas urbanas empobrecidas e rebeldes que eles têm recrutado como seus soldados rasos, tal como um fascista cristão como Pat Robertson não representa os interesses das massas que o seguem neste país – muitos deles respondendo à incerteza e ao parasitismo que a globalização imperialista impôs às suas próprias vidas. Só porque uma coisa tem muitos seguidores entre os sectores oprimidos, não significa que seja uma coisa boa.

As lições que deviam ser aprendidas com o Irão e que não devem ser repetidas

A República Islâmica do Irão surgiu no seio de uma luta revolucionária que em 1979 envolveu milhões de pessoas contra o Xá apoiado pelos EUA, depois da qual Khomeini, um aiatola fundamentalista islâmico reaccionário, consolidou o poder em várias etapas. Milhares de forças genuinamente anti-imperialistas – sobretudo os comunistas mas também outras forças laicas, nacionalistas e mesmo islâmicas mais liberais – foram detidas, torturadas e assassinadas e outras dezenas de milhares foram encarceradas ou forçadas ao exílio. As mulheres que se recusaram a usar o hijab [véu] foram chicoteadas, espancadas e presas e o sistema legal foi mudado para que o testemunho de um homem fosse igual ao de duas mulheres. Em 1988, mais de 10 000 presos políticos foram sistematicamente assassinados em massa pelo estado islâmico.

Como parte da sua ascensão ao poder em 1979, essas forças teocráticas apresentaram-se a si próprias e atraíram as massas com uma postura “anti-imperialista”. Embora tenham tido contradições reais com um regime específico (o do Xá do Irão [apoiado pelos EUA]), Khomeini e as suas forças eram teocratas reaccionários, e não líderes de uma luta anti-imperialista. A verdadeira tragédia, e a lição, da revolução iraniana foi que as forças revolucionárias alinharam no espalhar da ilusão de que essas forças eram forças anti-imperialistas com as quais se podiam aliar e segui-las. Por causa disso, as massas do Irão sofreram consequências desastrosas.

A cegueira à base de classe e ao conteúdo político dos movimentos islâmicos – cujo programa é a imposição do domínio teocrático e da lei da Xariá – deixará as pessoas desprevenidas para os desafios da guerra que o governo Bush activamente prepara contra o Irão. Bush colocará novamente às pessoas as opções de estarem com o seu país ou com os “terroristas”, com a Cristandade (ou modernidade, dependendo da audiência) ou com o domínio islâmico.

Quem se opõe à guerra do Iraque e à “Guerra ao Terror” de Bush tem que dirigir firmemente os seus principais esforços contra o seu próprio governo e para eliminar aquela que é sem dúvida a maior força reaccionária – o imperialismo norte-americano. Mas isso não significa ter que apoiar a ascensão dos clérigos reaccionários no Iraque nem os teocratas que actualmente governam o Irão. As pessoas podem e devem aprender a diferenciar entre as justas reivindicações e a luta de libertação nacional e o programa reaccionário e teocrático de forças obsoletas fingidoras que se aproveitam dos sentimentos de libertação nacional de vastos sectores dessas sociedades.

A revolução de nova democracia

Nas nações oprimidas como o Irão, o caminho para romper com o domínio do imperialismo e eliminar o feudalismo é a revolução de nova democracia que, ao contrário da revolução democrática dos séculos passados, é liderada pela classe proletária (trabalhadora) e pelo seu partido de vanguarda. No contexto de uma revolução de nova democracia, a unidade com outros estratos é possível e geralmente correcta. Isto inclui certamente os camponeses nas zonas rurais – bem como os vastos números de camponeses deslocados que foram atirados para a miséria dos bairros da lata; e, além disso, é geralmente possível uma unidade com sectores de pequenos capitalistas que têm verdadeiras contradições com o imperialismo por causa da subordinação de todo o desenvolvimento nacional aos interesses imperiais globais. E pode ser mesmo construída uma unidade com as forças religiosas não-teocráticas. Tudo isto deve ser desenvolvido como parte de um programa que rompa radicalmente com todas as estruturas de dependência do imperialismo e com o feudalismo escravizador – como uma primeira fase de um programa revolucionário de eliminação de toda a exploração e opressão e das relações sociais que delas resultam.

Isto é inteiramente diferente do programa das forças teocráticas, feudais e “tradicionais” retrógradas. Entre as primeiras tarefas das revoluções de nova democracia que ocorreram em lugares como a China ou o Vietname – antes de terem acabado – esteve a erradicação das formas de semifeudalismo que exploravam brutalmente o campesinato. Essas genuínas lutas de libertação nacional foram levadas a cabo tanto com objectivos como com métodos de combate que eram distintamente diferentes dos métodos de combate que são hoje usados no Médio Oriente; eram guerras populares que se baseavam e se uniam às massas populares para combater o imperialismo. E mesmo a forma como as guerras eram levadas a cabo e as forças de que dependiam reflectiam os objectivos dessas revoluções que incluíam, por exemplo, a libertação das mulheres.

A um outro nível, quanto mais houver uma poderosa resistência neste país – uma resistência que não possa ser escondida das massas do mundo, incluindo nas zonas que são alvo da agressão dos EUA e justificavelmente viveiros do ódio “contra a América” – mais acontecerão duas coisas. Primeiro, isso contribuirá para acabar com as guerras injustas que são levadas a cabo em nosso nome, bem como para criar condições mais favoráveis à revolução dentro dos EUA. Segundo, isso dará mais “ar para respirar” às forças laicas, progressistas e genuinamente revolucionárias que existem no Médio Oriente, incluindo no Irão.

1.  Por exemplo, em muitos lugares os imperialistas baseiam-se no poderio das forças feudais nas zonas rurais para aí manterem as massas sob controlo. (Neste mesmo momento, no Iraque, os EUA estão a “redescobrir” o grande valor dos “clãs tradicionais” e a tentarem chegar a acordos para os afastar da insurreição fundamentalista e ajudar a estabilizar zonas inteiras para o governo de ocupação.) E, na maior parte dos países oprimidos, as condições de exploração e opressão das massas em vastas regiões das zonas rurais, em conjunto com a sua relação próxima com a agricultura, contribuem para um abaixamento dos salários globais nesses países e um aumento dos super-lucros aí recolhidos pelos imperialistas. Ao mesmo tempo, a agricultura capitalista continua a penetrar nas zonas rurais dessas regiões e a minar aí as velhas relações feudais, ainda que também se combine com elas. Para saber mais sobre a dinâmica e as formas de domínio imperialista nas nações oprimidas, ver America in Decline [América em Declínio], Raymond Lotta, págs. 98-112.

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