Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 11 de Dezembro de 2012, aworldtowinns.co.uk

Egipto: Um momento crucial

Por Samuel Albert

Quase dois anos passados desde que uma sublevação de massas derrubou Hosni Mubarak, ainda se está a lutar pelo futuro do Egipto em todas as esferas da sociedade e nas ruas. A questão de saber o que o irá substituir ainda não está resolvida no momento em que escrevemos este artigo e pode não vir a ser completamente estabelecida durante os próximos tempos.

Neste momento, dois blocos políticos opostos, liderados pelos que se autodenominam “liberais” de um lado e pelos islamitas do outro, estão a atrair muito do resto da sociedade para os respectivos campos, numa tentativa de imporem uma ou outra das suas soluções opostas mas ambas reaccionárias. Apesar disto, será difícil obter uma estabilidade porque ainda continuam em funcionamento as profundas contradições subjacentes na sociedade egípcia que a 25 de Janeiro de 2011 rebentaram quase sem aviso através da superfície da terra.

A situação coloca problemas reais e talvez insolúveis, não só às classes dominantes egípcias mas também aos governantes imperialistas norte-americanos. Embora a Irmandade Muçulmana possa ser a sua melhor opção disponível dadas as circunstâncias, isto é apenas um dos lados da questão. A dinâmica entre a Irmandade e os salafistas no Egipto está condicionada pelos outros conflitos. Há uma contradição inerente entre a necessidade de os EUA apelarem à legitimidade islâmica para reforçarem o seu domínio regional e o papel de Israel como a instituição mais fidedigna a impor esse domínio. Além disso, a ascensão do Islão político é um fenómeno global que continua a desafiar ideológica e politicamente os EUA. É impossível prever a evolução desta situação e ela pode tornar-se desfavorável aos EUA.

Tudo isto não nos deve fazer esquecer o que foi conseguido na batalha pelo derrube de Mubarak. Foram precisos dezoito dias de luta e sacrifício antes de as forças armadas egípcias e os EUA terem sido forçados a abandoná-lo por temerem que o país ficasse totalmente incontrolável.

A atmosfera no Egipto passou de uma soturna submissão a uma rejubilante insubordinação. A sublevação anti-Mubarak surgiu sem qualquer aviso num país onde a actividade política tinha ficado limitada a pequenos grupos de pessoas. Agora, muitos milhões de egípcios sentem que podem e devem ter algo a dizer sobre o seu próprio destino e o do seu país e passaram a estar profundamente envolvidos na ponderação, discussão e luta sobre que tipo de país eles querem. Através de ajustamentos e recomeços em conjunturas cruciais, e agora talvez a uma escala ainda maior, as massas populares estão a ser atraídas para a vida política.

Neste sentido, a “Primavera Árabe” produziu uma situação alterada em muitos países. Milhões de pessoas ainda estão pouco dispostas a viver da forma antiga, e a antiga ordem – os regimes, as instituições políticas, os valores sociais e as ideias dominantes – não pode manter-se da mesma forma que durante décadas letais.

Agora, os alinhamentos de forças que tornaram possível o derrube de regimes odiados estão a mudar, e a situação é mais complexa e difícil para aqueles que continuam a estar profundamente descontentes com as suas vidas, com os seus países e com o mundo. Mas o potencial para que grandes sectores do povo aprendam rapidamente as lições cruciais também aumentou enormemente – se uma clara perspectiva comunista revolucionária puder emergir no meio do tumulto e da luta.

Há quase dois anos, os “revolucionários”, como eles se chamam a si próprios, retiraram a iniciativa a todas as velhas forças políticas e obtiveram uma certa legitimidade aos olhos da população em geral. A sua falta de clareza quanto ao seu objectivo final – por vezes exibida como marca de honra – não os fez parar porque as divisões na sociedade egípcia ainda estavam algo obscurecidas. Por exemplo, os liberais pró-ocidentais de certa forma alinharam com eles e os islamitas, enquanto força organizada, não estavam a lutar de nenhum dos lados.

Agora, a situação é diferente. Os grupos de jovens perderam a iniciativa para as milícias armadas e os soldados e tanques, não só na prática mas também no domínio das ideias, porque não conseguiram apresentar uma perspectiva convincente – ou porque eles próprios não têm essa concepção – de um Egipto que possa oferecer à vasta maioria do povo algo diferente das vidas duras e curtas e de amarga humilhação.

Neste momento, uma característica definidora – mas não única – da situação é a disputa entre forças reaccionárias com programas rivais sobre como pôr fim a este período de motins e restabelecer a ordem. De facto, são os islamitas que detêm a iniciativa e estão a fazer mais força.

Os islamitas – a Irmandade Muçulmana e os salafistas a que estão actualmente aliados – são muito claros quanto ao que querem. Embora a proposta de constituição que eles estão decididos a impor não seja dramaticamente diferente da Constituição egípcia de 1971, a qual abandonou o nacionalismo laico e a demagogia populista dos anos de Nasser e enquadrou o Islão como religião de estado, o objectivo deles agora é tornar a religião no próprio centro do que é considerado legítimo e tolerável e usam isto como bastão contra qualquer forma de oposição.

Há indícios inconfundíveis disto no texto da proposta de constituição. Isto é claro em algumas das coisas que diz, tais como proibir tudo que o que seja considerado insultuoso para o Islão sunita (e, para sermos justos, para o Cristianismo e o Judaísmo) e as cláusulas que defendem os valores familiares islâmicos – e patriarcais. É não é menos claro no que não diz. Por exemplo, embora proclame que os homens e as mulheres são iguais, foi especificamente decidido não proibir a discriminação com base no género. A ausência desta frase revela toda uma visão do mundo e um programa político.

Qualquer aparente carácter vago destas palavras desaparece nas ruas. Uma marcha de islamitas é uma marcha de homens barbudos. Quer seja sob as bandeiras verdes da Irmandade ou sob as bandeiras negras dos salafistas, os gritos são a favor da implementação da Xariá [lei islâmica]. Por vezes, erguem a bandeira da Arábia Saudita, um modelo de islamismo devido à sua mistura entre relações tradicionais, tecnologia avançada e riqueza.

Quando gritam “Pão, liberdade e Xariá” (em oposição às palavras de ordem anti-Mubarak “Pão, liberdade e justiça social”), o que eles desejam não é a liberdade de praticarem a sua religião – que ninguém contesta – mas a de impô-la a toda a sociedade. (Mais quanto a estas palavras de ordem mais à frente.) As acções deles nas ruas, bem como no palácio presidencial, tornam claro que eles consideram este objectivo inegociável.

A 22 de Novembro, o Presidente da Irmandade Muçulmana, Mohammed Morsi, publicou um decreto que coloca as decisões dele fora do alcance dos tribunais, que estavam a interferir com a elaboração da proposta de constituição, e a sua submissão a um referendo. De seguida, os islamitas fizeram uma grande manifestação no campus da Universidade do Cairo (o facto de a maior universidade pública do país ser uma praça-forte dos islamitas diz muito sobre a expansão do islamismo a um enorme sector dos profissionais urbanos e dos ricos). Os que se opõem à acção da Irmandade reuniram-se na Praça Tahrir, focando-se no que consideram ser uma tomada do poder por Morsi, como se o poder pessoal fosse o mais alto objectivo dele. Muitas pessoas pareciam estar a pensar que invocar a “democracia” e a legalidade é a base mais favorável para uma unidade da oposição a Morsi.

Mas, a 4 de Dezembro, tornou-se claro para todos que a questão mais importante não era saber se o governo executivo deveria ser vigiado pelo sistema judicial, mas sim a decisão de Morsi de submeter a agora terminada proposta de constituição a um referendo. Ele estava confiante de que iria obter a maioria dos votos – tal como tinha ganho a presidência – e depois, em nome da vontade do povo, imporia o domínio religioso.

Nesse dia, pelo menos cem mil manifestantes cercaram o palácio presidencial, o Itihadiya, em Heliopolis, um subúrbio do Cairo. Acabaram por romper as linhas da polícia e forçar Morsi a fugir temporariamente. Nada assim alguma vez tinha acontecido antes, nem mesmo durante os últimos dias de Mubarak. (Houve algumas interrogações sobre se os jovens tinham lutado mais arduamente dessa vez, ou se a polícia tinha cedido mais depressa.) Os manifestantes instalaram tendas no local e anunciaram a sua intenção de aí ficarem até Morsi anular os decretos dele e adiar o referendo.

Na manhã seguinte, os telemóveis começaram a tocar em todo o Cairo e em muitas zonas rurais. Foram arranjados autocarros para levarem homens para “defenderem o nosso presidente” contra os “contra-revolucionários”. Vinham reforçar um contingente inicial de apoiantes de Morsi que haviam percorrido a zona à volta do palácio, destruindo tendas e atacando os manifestantes, e tinham ficado reduzidos a cerca de cem. Mais tarde, um número ainda maior de forças anti-Morsi chegou ao palácio para fazer pressão pelas suas reivindicações face a uma violência extrema.

Foi, como comentou um observador, como a “Batalha do Camelo sem o camelo”, referindo-se a um momento decisivo da insurreição contra Mubarak, a 2 de Fevereiro de 2011, em que capangas de Mubarak montados em camelos e cavalos e a pé, com chicotes, espadas, bastões e pedras, atacaram o protesto na Praça Tahrir e em que os manifestantes se defenderam com igual vigor. Os animais, usados para transportar turistas à volta da vizinha pirâmide de Gizé, visavam não só aterrorizar a multidão mas também mostrar egípcios tradicionais “autênticos” a espancarem os jovens supostamente decadentes e ocidentalizados. (O nome da batalha também tem um tom religioso, designando a derrota dos futuros xiitas pelos sunitas no século VII.)

Também desta vez, os jornalistas, bloggers e outras testemunhas oculares disseram que os atacantes eram algo entre uma turba e uma milícia armada e organizada, por vezes ignorados pela polícia, outras vezes apoiados por ela. Alguns homens dispararam sobre os manifestantes com espingardas carregadas com chumbo de caça e ocasionalmente com balas. Uma vez mais, eles eram supostamente a voz do verdadeiro Egipto a intervir num bairro privilegiado.

Um vídeo icónico e agora viral capturou a essência desse confronto. Mostra um grupo de mulheres de cabeça descoberta lideradas por Shahendra Makhled. Esta idosa residente de Heliopolis é lendária pelo seu activismo radical desde a época de Nasser. Ela organizou uma marcha de mulheres (uma afirmação laica em si mesmo) em direcção ao palácio, esperando usar a sua autoridade moral para proteger as jovens dos atacantes islamitas. Um enorme homem barbudo coloca a mão dele firmemente na boca dela durante alguns segundos até que ela o repele de uma forma desafiadora. As outras mulheres gritam: “Somos todas egípcias (masri)”. Em desacordo e incrédulos, os homens gritam: “Morsi, Morsi”. (Sítio internet do El Watan)

Os dois lados lutaram com pés-de-cabra, pedras da calçada e facas. Um dos pelo menos oito mortos ou em vias de morrer na manhã seguinte foi um médico atingido quando ia a caminho de casa depois de ter saído de uma tenda de emergência médica perto do palácio. Mais de 1600 pessoas terão sido tratadas devido a ferimentos.

Porém, o que foi diferente da “Batalha do Camelo” foi que então, apesar de todas as pessoas que mataram e feriram, as forças de Mubarak perderam a batalha da opinião pública. A legitimidade dos manifestantes na Tahrir e noutros locais do país aumentou – muitas pessoas que se tinham mantido politicamente passivas começaram a acreditar que os jovens da Tahrir tinham a razão do seu lado. As forças reaccionárias ficaram isoladas e não conseguiram manter a sua ofensiva.

Não é esse o caso dos islamitas hoje. No auge do movimento anti-Mubarak, as palavras de ordem “O povo quer a queda do regime” eram essencialmente verdadeiras, embora os elementos activos fossem inquestionavelmente uma minoria, como o são quase sempre. Hoje em dia, “o povo” está claramente dividido e a legitimidade e a razão moral são mais fortemente contestadas.

Embora algumas pessoas chamem a Morsi “o Mubarak com barba” e repitam a velha exigência do derrube do regime, outras descrevem isso como uma falta de respeito pela democracia. O conceito de democracia em que o voto da maioria é chamado vontade do povo e fonte de autoridade política e legitimidade tem sido o discurso definidor, não só dos autoproclamados liberais mas também da maioria dos jovens que se consideram revolucionários e dos partidos de esquerda que muitas vezes estão politicamente à direita deles. Agora tornou-se num dos dois bastões manejados pelos islamitas. Contudo, não há nada de democrático em relação a eles em termos de, para usar um exemplo vivo e muitas vezes citado, se saber se as mulheres e as crianças são ou não propriedade dos homens.

A intensidade da contestação de legitimidade está relacionada com o facto de as classes dominantes do Egipto estarem elas próprias mais agudamente divididas do que quando a questão era libertarem-se de Mubark e da clique dele.

O estado egípcio – as forças armadas, a polícia, os tribunais, a imensa e quase omnipresente burocracia, etc. – tem-se mantido quase intacto durante todo este processo. Contudo, as divisões no interior das classes dominantes e a situação política estão a debilitar o estado em geral, independentemente do desejo de qualquer pessoa.

Quando Morsi foi eleito em Julho, a princípio o Conselho Supremo das Forças Armadas (SCAF, na sigla em inglês), que tomou as rédeas do governo das mãos de Mubarak, resistiu a entregar-lhe muito poder. Após um período de puxa e empurra no topo, típico de classes dominantes divididas, alterou subitamente a sua posição e afastou-se das primeiras linhas do governo.

A Irmandade Muçulmana não está a contestar o poder do estado; está a tentar incrustar-se nele. Embora Morsi tenha atacado os juízes do tempo de Mubarak quando inicialmente declarou que o seu governo estava fora do alcance do sistema judicial, ele agora parece estar a tentar apaziguá-los. A proposta de constituição preserva os benefícios económicos, as prerrogativas políticas e a enorme dimensão das forças armadas, bem como a autonomia dos generais em relação a uma supervisão civil. Quando, a 10 de Dezembro, Morsi deu autoridade ao exército para intervir nas ruas e prender pessoas, os representantes das forças armadas saudaram esta reafirmação do seu familiar papel de garantes da ordem.

Como se tornou óbvio quando as tropas e os tanques do exército avançaram para defenderem o palácio presidencial, construindo à volta dele um muro de betão para manterem afastados os manifestantes, neste momento restabelecer a ordem significa criar condições para o referendo de Morsi. Se o sistema judicial concordar em declarar as eleições justas e legais, ele poderia sair vencedor do seu jogo arriscado.

Agora, muitas vezes são os islamitas que gritam: “O povo e o exército são um só”. É doloroso ouvir alguma da oposição a tentar reavivar estas velhas e desastrosamente enganadoras palavras de ordem com a ideia de que a polícia e/ou as forças armadas os irão proteger.

Não é claro o que irão fazer as forças armadas egípcias e os EUA, mas as tentativas de Morsi para construir uma aliança com as forças armadas e os EUA são inconfundíveis.

O que quer que o exército faça é provável que seja em coordenação com os EUA. A explicação para a aparente mudança de atitude do exército egípcio em relação a Morsi no verão passado pode ser encontrada na Casa Branca. Morsi fez o seu avanço para a supremacia no dia seguinte a os EUA o terem elogiado calorosamente como “estadista” comprovado por ter usado a sua influência sobre o Hamas para conseguir um cessar-fogo com Israel. Quando o decreto dele e os subsequentes protestos mergulharam o Egipto numa crise, o Presidente norte-americano Barack Obama chamou Morsi para discutir o assunto. Citando fontes da Casa Branca, o jornal Al Ahram noticiou a 7 de Dezembro que “Obama apelou aos líderes da oposição a participarem em conversações com o presidente sem pré-condições”. Isto foi equivalente a um apoio à posição de Morsi.

Não é certamente uma coincidência que uma das poucas medidas legislativas que ele tomou com os seus novos poderes, para além de avançar para o referendo, foi aprovar os novos impostos e cortes orçamentais exigidos pelo FMI. (A 11 de Dezembro estas medidas e as negociações tiveram de ser canceladas devido à “instabilidade política” – talvez por não ser o momento certo para o regime ser visto a rastejar perante o capital internacional).

A oposição anti-Morsi partilha o respeito dele pelo estado, o que neste momento é outra vantagem para Morsi. Amr Moussa, ministro e alto diplomata no tempo de Mubarak e agora um dos dois principais líderes da Frente de Salvação Nacional na oposição, disse à BBC que é contra a recuperação do grito “O povo quer a queda do regime”. “O nosso objectivo não é derrubar o Presidente”, disse ele. “O nosso objectivo não é fazer nada que conduza à desintegração do estado”.

Não é verdade, como alega Morsi, que a oposição a ele seja constituída por mãos pagas e manipuladas pelos faloul, os restos do regime de Mubarak. Mas estas pessoas estão a desempenhar um papel público proeminente – e provavelmente ainda maior nos bastidores, através da polícia, de capangas organizados e por aí adiante. O papel mais consistente da polícia desde a queda de Mubark, além de disparar e espancar as pessoas, tem sido fomentar a desordem – desorganizando o trânsito, tolerando as violações, os roubos e o mercado negro de bens quotidianos essenciais como o combustível para cozinhar. Tudo isto se acrescenta à sensação de caos extenuante que torna difícil a vida de toda a gente e sobretudo dos pobres. O país precisa de ordem e autoridade. A questão é saber de que tipo.

Muitos dos juízes que se opuseram à tomada do poder por Morsi foram nomeados no tempo de Mubarak. Os salafistas, que têm vindo a fazer um protesto para exigir uma purga na televisão estatal daquilo a que eles chamam personalidades contaminadas por Mubarak, estão claramente a tentar calar os seus críticos, ao mesmo tempo que os seus próprios anfitriões de programas de talk show andam sem controlo com rumores e mentiras ultrajantes, mas eles têm razão num ponto: muita da estrutura de poder de cima a baixo – o que inclui muitos proeminentes políticos liberais – foi contaminada e ficou mesmo desacreditada pelo seu papel no tempo de Mubarak. Claro que a Irmandade Muçulmana tem de avançar com cuidado em relação a este assunto porque também ela por vezes funcionou como oposição leal e legitimadora no tempo de Mubarak, e gostaria de fingir que as forças armadas que ela agora corteja eram neutras.

Isto são indícios adicionais da persistência do antigo regime, das lutas internas entre as classes dominantes e da desordem e fluidez de uma situação que ainda não está claramente definida em dois lados nitidamente organizados como poderia parecer.

O chefe reconhecido da oposição é Mohammed El Baradei, o líder da Frente de Salvação Nacional que abarca todos os liberais e a maioria dos partidos de esquerda e se justapõe às organizações de jovens. Tanto o partido de Mubarak, como o SCAF e a Irmandade o cortejaram num momento ou noutro. Ele aparece muitas vezes na Praça Tahrir e faz comunicados a defender os jovens.

Ele tem uma reputação de impoluto, corajoso e íntegro – mas com que objectivos? Mesmo que fosse possível existir o tipo de Egipto que ele promete – um Egipto sem corrupção nem tortura mas tão firmemente ligado ao capital estrangeiro e ao mercado internacional como no tempo de Mubarak, inevitavelmente com todo o empobrecimento, atraso e desigualdades para as massas populares daí resultantes – como é que isso poderia satisfazer a reivindicação de “pão, liberdade e justiça social”?

De facto, é difícil ver como é que qualquer governo de um Egipto cujo povo seja mantido no desespero por uma classe dominante dependente do imperialismo o poderia fazer sem uma cruel repressão e mesmo tortura. Pode fornecer pão – todos os governos subsidiaram o preço deste pilar da existência – mas não pode realmente prometer, já para não falar em criar, uma mudança de fundo para os camponeses a quem são negadas terras adequadas e provisões, para os trabalhadores empobrecidos das grandes fábricas têxteis estrangeiras e nacionais, para as massas populares urbanas que não têm encontrado de facto um lugar na cidade e na sua economia e para os jovens frustrados e furiosos, entre os quais os jovens instruídos de todas as classes que não conseguem aplicar as suas capacidades e talento na melhoria do país e que muitas vezes têm de procurar trabalho no estrangeiro. Uma vida com significado é negada a quase toda a gente. E como é que qualquer governo egípcio das classes dependente do capital imperialista e do mercado internacional podem resistir à “linha vermelha” abertamente declarada pelos EUA: a de que o Egipto não pode hesitar em ajudar a proteger Israel dos palestinianos?

Seria trágico se aqueles que querem a revolução no Egipto se deixassem transformar em peões no confronto entre, por um lado, os islamitas dependentes do imperialismo que oferecem o falso consolo da religião, a hipócrita caridade da mesquita e a sufocante solidariedade da “comunidade dos crentes” que suprime o pensamento crítico e, por outro, os seus rivais representantes políticos da dependência do imperialismo que pregam o falso consolo dos “valores democráticos” que não podem mudar as vidas diárias das pessoas nem lhes permite desabrocharem enquanto seres humanos.

Os islamitas terão vantagem enquanto puderem descrever o conflito como sendo entre as vastas massas de oprimidos e os privilegiados defensores do domínio ocidental. A tentativa de descrever os laicos como uma minoria preocupada sobretudo com os seus privilégios em extinção é reforçada pelos liberais que pouco se incomodam em dar resposta às necessidades fundamentais das classes mais baixas.

O conceito de comunidade religiosa tem sido usado para esconder a necessidade da libertação nacional, e os opositores do domínio islâmico são rotulados de mercenários ao serviço de “estrangeiros” não especificados (a Irmandade Muçulmana preferiria visar implicitamente “os judeus” e Israel, que assedia o Egipto, em vez dos EUA, cujas ordens políticas não têm recurso e se baseiam no seu domínio económico). O país não pode obter a sua libertação do imperialismo através da religião, mas apenas através da construção de um sistema económico, social e político radicalmente diferente. Já é mais que tempo para que seja recuperada e aplicada a questão das classes com interesses antagónicos em relação ao futuro do país. Uma grande parte do problema é a falta de uma verdadeira alternativa à frustração e dor da vida diária e à perspectiva religiosa que implica desespero e submissão.

Muitas pessoas que pensam ter clareza em relação à natureza reaccionária da Irmandade e da liderança da Frente de Salvação Nacional dizem que pelo menos o movimento anti-Morsi nas ruas está fora do controlo de quem quer que seja. A isto respondo que sim e que não.

É verdade que enquanto os islamitas estão confiantes em que se podem basear em parte das massas para o seu projecto reaccionário, os liberais têm medo da agitação. Eles não queriam que os jovens e outras pessoas enfrentassem os islamitas de uma forma tão determinada como o fizeram.

Muitos dos que gritam “Morsi é o Mubarak com barba” e “Morsi vai-te embora” estão fora de controlo no melhor dos sentidos porque não estão dispostos a deixar de lutar por uma mudança profunda de condições que eles consideram inaceitáveis. A coragem deles criou uma situação em que o despertar político das massas populares e a disputa e desordem entre os reaccionários poderá criar condições para uma verdadeira revolução cujo objectivo seja libertar os egípcios e o mundo de todas as relações sociais de opressão.

Mas, num sentido ainda mais fundamental, este movimento não está fora de controlo porque poucos dos seus participantes conseguem ver para além dos horizontes das duas perspectivas reaccionárias e tendências políticas que lutam pelo poder. Mais importante ainda, não está ideologicamente fora de controlo dos liberais porque implícita ou explicitamente não se libertou do ponto de vista dominante de que o capitalismo – com todas as formas específicas com que este actua sobre a economia, a sociedade, as vidas e as mentes num país dominado como o Egipto – é o único sistema social possível num futuro previsível e do ponto de vista de que a revolução socialista enquanto transição para um mundo comunista é impossível ou mesmo indesejável.

Muitas pessoas pensam que vêem para além dos liberais, mas neste momento não conseguem imaginar nenhuma saída a não ser a vitória, para o dizer de uma forma sucinta, de Morsi ou El Baradei. Francamente, esta limitação da parte das que têm sido as forças da “Tahrir” é uma grande ajuda a Morsi. Lenine escreveu sobre “a tendência das massas para caírem debaixo das asas da burguesia” durante alguns períodos de insurreição revolucionária na Rússia; isto aplica-se ao Egipto porque tanta gente não consegue ver para que outro caminho se virar.

Nos dois últimos anos, nós vimos o melhor e o pior de diferentes sectores do “povo”, dependendo das inconstantes combinações de circunstâncias. O derrube de Mubarak e muita da destemida luta política desde então têm fornecido um vislumbre do que as pessoas são capazes, sobretudo quando um sector mais avançado do povo consegue tomar a iniciativa.

O problema que tem de ser resolvido é como chegar ao potencial revolucionário entre o povo. Isto requer o desenvolvimento de uma compreensão de quem são os amigos e quem são os inimigos dos interesses mais fundamentais das massas populares egípcias, quais são os objectivos que precisam de ser atingidos ao serviço desses interesses e como os atingir.

Entre a sede de mudança e a crise de legitimidade política, a atracção das pessoas para a luta de ambos os lados pode vir a ser transformada em mais uma vantagem por uma força verdadeiramente revolucionária. Mas também apresenta o enorme perigo de um grave recuo ou mesmo de uma solução reaccionária para esta crise, pelo menos de momento – e os momentos cruciais como os dos dois últimos anos no Egipto não surgem na história todos os dias.

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