Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 4 de Fevereiro de 2013, aworldtowinns.co.uk
Egipto, dois anos após Mubarak
Por Samuel Albert
No segundo aniversário da revolta que derrubou Hosni Mubarak, os manifestantes contra o governo islâmico que o substituiu viram-se a ainda terem de combater as mesmas unidades policiais e os mesmos espancamentos, tortura e morte às mãos delas.
As manifestações no Cairo, em Alexandria e noutras cidades foram marcadas por uma raiva contra o que muita gente considera ser o sequestro do que eles chamam a “revolução”, pela Irmandade Muçulmana agora no governo. Muitos milhares de jovens e outras pessoas lutaram, e muitas morreram, mais de 50 segundo o Al-Ahram, em nome das mesmas palavras de ordem gritadas contra Mubarak – “O povo quer a queda do regime” e “Pão, liberdade e justiça social”.
Esta nova vaga de motins contra o governo encabeçado por Mohammed Morsi tornou-se ainda mais decidida durante os dias seguintes. A 25 de Janeiro, um tribunal de Port Said condenou 21 homens à morte pelo que disse ter sido o papel deles num ataque num estádio de futebol que matou 74 pessoas. Isto gerou uma indignação extrema porque foi amplamente visto, a nível local e noutros lugares, como uma tentativa cínica de fazer desses fãs do futebol os bodes expiatórios das mortes.
Em Fevereiro de 2012, durante um jogo entre o clube da capital egípcia al-Ahly e o clube al-Masry de Port Said, homens armados com facas, espadas e outras armas atacaram os apoiantes da equipa do Cairo e perseguiram os jogadores. Houve pessoas atiradas das bancadas. Segundo alguns relatos, as luzes do estádio foram apagadas e os portões de saída foram fechados. Muitas pessoas morreram ou ficaram feridas durante a debandada das pessoas ao tentarem fugir.
A rivalidade entre as duas equipas e os fãs delas é lendária e é claro que estas coisas têm a sua própria dinâmica. Mas nada de semelhante tinha alguma vez ocorrido. Numa ruptura com a prática habitual, a polícia não revistou as pessoas à entrada do estádio e não interveio para proteger os que estavam a ser atacados. Muitos egípcios acreditam que isto não foi uma questão de negligência oficial, mas antes que as autoridades tiveram conhecimento prévio dos ataques, que os encorajaram e que talvez os tenham organizado. Mesmo o jornal The New York Times (1 de Fevereiro de 2012) deu crédito à suspeita generalizada de que isto foi um acto de vingança contra os Ultras do al-Ahly, uma organização de fãs ferrenhos cujos membros têm estado na vanguarda da luta contra a polícia e outros reaccionários desde o primeiro dia dos protestos anti-Mubarak na Praça Tahrir e desde então até hoje. A ideia de que este massacre foi apenas o resultado de uma rivalidade desportiva foi negada pela mostra de solidariedade com os Ultras do al-Ahly no dia seguinte por parte dos apoiantes de um ainda mais feroz rival do al-Ahly, o clube Zamalek do Cairo, que impôs o cancelamento de um jogo dizendo que o futebol tinha de ser suspenso até que houvesse justiça para todos.
Alguma comunicação social deu relevo a entrevistas a familiares dos mortos que acolheram bem a condenação à morte, mas muitas pessoas em Port Said e em todo o país viram isto como uma continuação das tentativas de dividir o povo e desviar a atenção da culpa da polícia e de responsáveis superiores. Algumas pessoas foram presas, mas nenhuma foi levada a julgamento.
Em contraste com estas condenações à morte, nenhum agente de segurança nem nenhum polícia foi considerado responsável pela morte de mais de 800 civis durante os 18 dias que levaram à queda de Mubarak. Nem mesmo Mubarak foi condenado à morte depois de ter sido considerado culpado por essas mortes. Nem mesmo, como as pessoas gostam de salientar, o homem que em 1981 assassinou o Presidente Anwar Sadat.
A indignação perante esta injustiça criou uma situação que ficou perto de uma insurreição em Port Said, onde multidões invadiram violentamente a prisão central e atacaram esquadras da polícia e outras instituições estatais. Alguns polícias foram mortos. Diz-se que os Ultras do al-Masry desempenharam um importante papel na luta. Dezenas de fábricas nesta zona pobre e altamente industrial foram encerradas. Eventos semelhantes ocorreram em Suez, no outro extremo (sul) do Canal do Suez. Na cidade de Ismailia, no Canal, os manifestantes incendiaram completamente a sede do Partido Liberdade e Justiça, a ala eleitoral da Irmandade Muçulmana. Coligações de organizações de jovens têm sido indicadas como estando na liderança da luta nessas cidades.
Há décadas que as pessoas das cidades do Suez se sentem rebaixadas e prejudicadas pelo governo central. Os residentes de Port Said desempenharam um importante papel na resistência às forças israelitas, britânicas e francesas que tentaram tomar o Canal do Suez em 1956. Hoje em dia, os homens mais velhos da cidade do Suez relatam com orgulho a forma como, quando em 1967 os invasores israelitas derrotaram o exército egípcio no Canal do Suez, alguns membros do exército e activistas organizaram e armaram os trabalhadores das fábricas e outros habitantes locais para repelirem vitoriosamente os invasores. Muitas pessoas daqui sentem que a sua disposição a morrer para salvarem o Egipto e o seu ódio a Israel tem sido um embaraço para todos os governos egípcios. Mubarak, dizem as pessoas no Suez, tinha um ódio particular contra eles. O sucessor dele, Morsi, actuou contra essas cidades com uma veemência não vista na capital, declarando o recolher obrigatório e mandando para lá o exército.
A ânsia das autoridades em esmagarem as cidades do Suez tornou-se ainda mais evidente a 27 de Janeiro, quando a polícia abriu fogo em Port Said sobre os funerais dos 30 manifestantes que tinham matado no dia anterior. Pelo menos mais sete pessoas morreram. Nos combates que se seguiram, a polícia foi expulsa da cidade. Dezenas de milhares de pessoas marcharam pelas ruas gritando “Morsi vai-te embora”, “Abaixo a Irmandade” e “O povo quer o estado de Port Said”. As gigantescas manifestações começaram à hora do recolher obrigatório e mantiveram-se toda a noite, todas as noites. Apesar dos seus poderes de estado de emergência, durante vários dias o exército não conseguiu – ou não ousou – impor o recolher obrigatório ou qualquer outra coisa. O governo de Morsi acabou por recuar nessas medidas. Os activistas no Cairo organizaram uma caravana de solidariedade para levarem mantimentos a Port Said.
Embora a luta no Suez tenha tido as suas próprias particularidades, nos protestos ocorridos em todo o país parece ter havido um grande sentimento de luta contra uma estrutura de poder injusta, embora o que define essa estrutura continue a ser tão obscuro na mente de muita gente como alguns dos próprios acontecimentos mais negros. Quem organizou os massacres do estádio de Port Said? Quais as ligações entre o exército cujo Conselho Supremo governava o país nessa altura, a polícia, os tribunais e a Irmandade Muçulmana agora no governo? E quem ou o que é que os pode substituir?
Entre muitos egípcios mantém-se um sentimento de haver forças obscuras e mãos misteriosas a trabalhar. Este sentimento emergiu de novo depois de, durante a semana seguinte, pelo menos duas dúzias de mulheres terem sido violadas dentro e à volta da Praça Tahrir por bandos de homens, por vezes em grande número e armados com facas. É certo que em nenhum país do mundo actual para ocorrerem as violações têm de ser organizadas de cima e que as agressões sexuais contra as mulheres fazem há muito tempo parte da vida diária no Cairo. Mesmo quando ocorrem espontaneamente, enquanto actos de homens individuais, são um produto de uma sociedade onde o domínio dos homens sobre as mulheres é geralmente assumido como um dado adquirido. Mas tal como, por exemplo, na “Batalha do Camelo” durante a revolta de 2012, quando hordas de homens tentaram expulsar as pessoas da Praça Tahrir atirando sobre elas pedras da calçada enquanto a polícia se mantinha impávida, e no massacre do estádio de Port Said, muitas pessoas estão agora a interrogar-se quem é que essas pessoas – neste caso esses violadores – representam e que vínculos podem ter com vários níveis e tipos de autoridade. A polícia mata pessoas por se estarem a manifestar na Tahrir mas nunca aí incomodaram os violadores, e raramente em qualquer outro lugar, a propósito deste assunto.
Numa altura em que as cidades do Canal do Suez ficavam fora de controlo e se intensificava a luta no Cairo, a 29 de Janeiro o chefe das forças armadas egípcias e Ministro da Defesa, General Abdul Fattah el-Sisi, avisou os partidos da oposição que participavam nas manifestações e o governo de Morsi de que era o próprio estado que estava em perigo de colapso. Embora não tenha ameaçado com uma intervenção do exército, não precisava de o fazer num país onde durante mais de seis décadas o exército governou directamente através de generais como Mubarak, antes de entregar o governo a Morsi, há cinco meses. Em todo o caso, ele declarou que o exército iria continuar a ser “a massa sólida e a coluna vertebral sobre a qual assentam os pilares do estado egípcio”.
El-Sisi, devemos salientar, parece ter sido o então anónimo general sénior que, numa entrevista em Abril passado, defendeu os “testes de virgindade” do exército às manifestantes. Os soldados tinham detido várias mulheres que participavam na manifestação do Dia Internacional da Mulher no Cairo. Durante a detenção, elas foram separadas em “meninas” e “mulheres” (ou seja, mulheres casadas) e as vaginas das “meninas” foram penetradas com instrumentos afiados para “testarem” se elas eram “virgens”. Estas mulheres, disse o general ao canal televisivo CNN, “Não são como a sua filha ou a minha. Trata-se de meninas que acamparam em tendas com manifestantes masculinos.”
Independentemente de quem possam ser os violadores específicos da Tahrir, isto é claramente um fenómeno tolerado e encorajado pelos mais altos níveis da sociedade egípcia e pela moralidade que prevalece sob o domínio deles. Nas últimas semanas, grupos de mulheres organizaram brigadas de mulheres e alguns homens para vigiarem os ataques das turbas contra as mulheres e para as socorrerem. Também têm usado o Twitter para rapidamente reunirem forças à medida que for preciso. Os manifestantes da Tahrir têm sido chamados a cercar e impedir fisicamente os ataques e qualquer forma de assédio. Isto pode não envolver ainda um número suficiente de pessoas como deveria, mas é extremamente importante porque estas violações e as atitudes que elas concentram estão entre as características definidoras da actual situação egípcia que tantos manifestantes odeiam e rejeitam. Esta iniciativa também mostra que as pessoas estão a tomar os assuntos nas suas próprias mãos e a opor-se à atitude predominante pró-violações com uma atitude diferente e muito melhor.
Infelizmente, este não é, pelo menos ainda não é, o modelo geral. Se o movimento tem alguma liderança global, ela é a dos partidos de oposição agrupados na Frente de Salvação Nacional [FSN]. Eles têm exigido que Morsi se demita e seja substituído por um “governo de salvação nacional” que os inclua a eles. Quando a actual vaga de protestos começou, a FSN recusou-se a realizar conversações com Morsi a menos que ele concordasse primeiro com um “governo de unidade”. No final de Janeiro, Mohamed El Baradei, o seu coordenador, disse no Twitter: “Acabar com a violência é a prioridade”. Ele apelou a negociações imediatas para levar os partidos de oposição para o governo e à criação de um comité para rever a constituição que Morsi impôs recentemente e que foi ratificada por um referendo. Se esta exigência não fosse satisfeita, ameaçou ele, a oposição boicotaria as próximas eleições que visam fazer renascer a câmara mais baixa do parlamento, que foi dissolvida pelos tribunais. Ele e muitos outros avisaram que sem essas eleições, nenhum governo poderia ser considerado legítimo.
A Al-Azhar, a mesquita e universidade islâmica que é a principal instituição religiosa do Egipto, juntamente com alguns salafistas e representantes de várias igrejas cristãs, iniciaram um “diálogo” com esse objectivo, em que também participaram várias figuras ligadas às organizações dos “jovens revolucionários”. Diz-se que anteriormente El Baradei quis falar com o Ministro da Defesa e o Ministro do Interior, que representam o exército e as forças de segurança, e não com o presidente que tem pouco poder sobre estes ministros.
Isto é uma situação complicada em que as pessoas, repletas de um justo ódio contra a actual situação – odeiam a ideia de um regime islâmico e a ausência de qualquer mudança real na sociedade egípcia desde a “revolução” –, viram pouca alternativa para além da perspectiva de que alguma forma de arranjo em que vários partidos que representam a actual situação, quer islamitas quer pró-ocidentais e supostamente laicos, venham a partilhar o governo. Se o conseguirem – dado que a rivalidade ideológica e política entre eles é real, o que é um grande se – o resultado disso teria como objectivo reparar as fendas na estrutura do poder e fortalecer o aparelho de estado que ficou deslegitimado e debilitado. Para ser visto como mais legítimo, o estado que Mubarak antes dirigiu precisa de se apresentar como produto da revolta que o derrubou.
De uma forma ou de outra, as forças armadas continuariam a desempenhar um papel central na política, prontos a apoiar a polícia a impor a ordem existente. E muito provavelmente o Islamismo também iria desempenhar um papel ideológico e político central. Isto não tem apenas a ver com a força dos islamitas (como se diz que el-Sisi o é) nas forças armadas. Nem é apenas porque o maior partido salafista rompeu com Morsi e se aliou aos “liberais” contra a Irmandade, que os salafistas sentem não ser suficientemente islâmico. Esta “política” é um regateio político cujo objectivo é gerar uma coligação governamental, o que por si só deveria ser uma exposição dos líderes “liberais” e da Frente de Salvação de “esquerda”.
De uma forma mais fundamental, mesmo os líderes de oposição declaradamente laicos não têm nenhum desejo de uma mudança social radical e têm todas as razões para temerem qualquer questionamento dos valores dominantes que foram gerados pela subjugação do Egipto ao capital imperialista e ao mercado mundial capitalista e ao atraso que o domínio imperialista impôs.
A constituição da Irmandade ameaça gravemente os direitos das pessoas, sobretudo porque torna a religião na fonte suprema dos valores e criminaliza todo o tipo de coisas que a religião possa considerar ofensiva. É particularmente abominável na sua bênção ao estatuto subjugado das mulheres. Mas, para os partidos da Frente de Salvação, definitivamente o grito de “liberdade” não significa a libertação de um sistema económico, social e político de opressão. Isto fica manifesto na vontade deles de porem de lado mesmo os mais elementares direitos das mulheres para formarem uma coligação governamental com forças que têm uma posição clara a favor do sistema patriarcal. Como é que alguém pode sequer pronunciar a palavra “liberdade” sem verdadeiramente defender a liberdade das mulheres em relação às violações e a todas as outras manifestações de supremacia masculina? Mas isso requereria tentar derrubar o sistema, e não salvá-lo.
Contudo, mesmo que, tal como os observadores reaccionários gostam de salientar, muito da vida diária no Cairo continue como sempre, aparentemente inalterada, a agitação política que envolve milhões de pessoas continua e o processo do deslegitimação da actual estrutura de poder e das suas instituições não é assim tão fácil de parar, independentemente do que os partidos tentem remendar.
Por exemplo, o ataque policial aos participantes na 6ª-feira, 1 de Fevereiro, “Dia de Reflexão”, na Praça Tahrir e frente ao palácio presidencial, acabou por ter um resultado diferente do esperado pelas forças da ordem – e esta expressão engloba todos os que querem preservar essa ordem, de uma forma ou de outra. As Forças Centrais de Segurança (soldados sob o comando supostamente civil do Ministro do Interior de Morsi) usaram o que os manifestantes relataram ser uma nova e mais perigosa forma de gás lacrimogéneo.
As forças de segurança agarraram em muitas pessoas e levaram-nas para as suas próprias instalações, em vez de as entregarem aos tribunais. Um jovem foi espancado até à morte na Praça Tahrir. Um outro foi preso e, segundo a família dele, torturado até à morte, embora as autoridades tenham alegado que ele morreu num acidente de automóvel. No funeral dos dois, muitos jovens, homens e mulheres, gritaram: “Ou obtemos justiça para eles ou morremos como eles”.
Embora a polícia tenha matado muitas centenas de pessoas desde a queda de Mubarak, estes assassinatos em particular parecem ter tido um certo eco, talvez porque liguem de uma forma tão clara as forças de segurança do antigo regime de Mubarak ao novo governo de Morsi. As suas semelhanças são inconfundíveis.
Também nessa noite, vários canais egípcios de televisão por satélite mostraram vídeos da polícia a atacar e espancar selvaticamente um homem de 50 anos. Depois, prenderam-no a um veículo da polícia, despiram-no e começaram a espancá-lo de novo. No dia seguinte, as autoridades apresentaram-no na televisão, onde ele alegou que, na realidade, eram manifestantes que o estavam a espancar e que a polícia o tinha ido salvar. Posteriormente, depois da agitação em torno do vídeo ter forçado as autoridades a libertá-lo, o homem explicou que a polícia o tinha obrigado a mentir.
Muitos egípcios comuns odiaram a polícia durante anos, mas como milhões de pessoas tinham visto o vídeo com os seus próprios olhos, e como o que viram era inconfundível, o que as autoridades podem ter pensado ser apenas uma manobre inteligente gerou uma nova marca de ódio público à polícia e ao governo que a está a proteger. A polícia pode sentir que pode agir sem Morsi, mas Morsi claramente não pode agir sem a polícia.
A repugnância, e na realidade também o desespero, dos guardiães da ordem ficou ainda mais desmascarada e intolerável. Mas a questão de saber o que irão as pessoas tolerar a todos os níveis está relacionada com saber se elas pensam ou não que há uma verdadeira alternativa, não só aos regimes odiados mas a todo o sistema cuja lógica esses regimes representam.