Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 27 de Março de 2006, aworldtowinns.co.uk

Descontentamento no Curdistão iraquiano

Todos os anos, a 16 de Março, há uma cerimónia na cidade de Halabja, na parte leste do Curdistão iraquiano, em memória das 5000 pessoas mortas em 1988, quando Saddam Hussein enviou aviões para lançarem gás venenoso, num esforço para intimidar os curdos a não se rebelarem contra o seu regime. Saddam foi então apoiado pelos EUA, e Washington impediu o Conselho de Segurança da ONU de denunciar esse crime, embora mais recentemente os EUA tenham chegado a usar esse incidente como um dos seus pretextos para invadirem o Iraque.

Este ano, a cerimónia transformou-se num protesto de muitos familiares das vítimas e de outras pessoas contra o governo curdo iraquiano apoiado pelos EUA. Mariwan Hama-Saeed, um jornalista do Instituto para a Guerra e a Paz (IWPR), foi entrevistado pela BBC. Mais tarde, ele e um jornalista estagiário local escreveram relatos em primeira mão na página da internet desse grupo (www.iwpr.net). Ele disse que entre 3 a 5 mil pessoas, sobretudo jovens que gritavam “Abaixo, abaixo, abaixo o governo”, participaram nos protestos de rua para impedir os funcionários curdos de entrarem na cidade. Ergueram barricadas em chamas, deslocaram pedras pelas ruas e colocaram-se a si próprios à frente dos veículos que tentavam entrar, impedindo com êxito que a cerimónia tivesse lugar. Esses manifestantes foram atacados por milicianos leais à União Patriótica do Curdistão (PUK), que controla a parte leste do Curdistão iraquiano. As forças de segurança dispararam e mataram um rapaz de 17 anos. Em resposta, os manifestantes queimaram totalmente um monumento aos mortos de 1988.

Cerca de 80 pessoas foram presas. Sabe-se que muita gente está escondida, temendo rusgas mais generalizadas. As forças de segurança espancaram pelo menos sete jornalistas e confiscaram as suas fotografias. O governo curdo exigiu que eles cooperassem fornecendo provas contra os 45 réus que actualmente enfrentam julgamento. Um juiz local avisou que poderiam enfrentar a pena de morte ao abrigo de uma lei do tempo de Saddam sobre danos à propriedade pública.

Há dois anos, o principal responsável norte-americano de então no Iraque, Paul Bremer, proferiu um discurso no monumento ao lado do líder do PUK, Jalal Talabani, actual presidente do Iraque. Bremer disse que a cidade era a prova de que a invasão norte-americana se justificava, e prometeu um milhão de dólares de ajuda aos habitantes da cidade. Os habitantes locais dizem que o PUK usou o dinheiro em proveito próprio, tal como eles e os EUA também usaram a tragédia de 1988 para prosseguirem com os seus próprios interesses.

Embora as autoridades locais e alguma comunicação social ocidental tenham tentado caluniar os manifestantes como sendo fundamentalistas islâmicos, Hama-Saeed disse: “Não vi nenhuma evidência disso em Halabja”. Pelo contrário, disse ele, a acção foi simplesmente a maior de uma recente série de erupções que exprimem o descontentamento com o poder dos dois partidos curdos, o PUK e o Partido Democrático Curdo (KDP) que governam o Curdistão ocidental. Isto é um problema potencialmente sério para os ocupantes norte-americanos, uma vez que o seu governo fantoche se baseia nesses dois partidos curdos de base clânica e nos principais responsáveis do clero xiita.

Tendo em conta estes desenvolvimentos, publicamos uma versão ligeiramente editada de um relato enviado por um activista político curdo que apareceu na edição de 26 de Fevereiro de 2006 do Haghighat, órgão do Partido Comunista do Irão (Marxista-Leninista-Maoista). As explicações em parênteses são da responsabilidade do SNUMAG.

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Uma economia em tempo de guerra

A situação está em geral sob controlo dos EUA. Os norte-americanos compraram as forças curdas dominantes. Ao mesmo tempo, gastando dinheiro, conseguem por enquanto manter feliz um grande sector da população. Há muito dinheiro em circulação. Algumas pessoas têm várias fontes diferentes de rendimentos, incluindo um ou mais salários como trabalhadores, polícias ou peshmergas (os antigos guerrilheiros que são agora membros das forças de segurança) e subsídios como familiares dos mártires de 1988.

Há muitos peshmergas e membros da Guarda Nacional. Recebem cerca de 400 dólares norte-americanos mensais para trabalharem durante uma semana por mês. Conheço uma família de sete membros que tem duas pessoas nas forças de segurança. As despesas da família são cerca de 400 a 500 dólares por mês. Costumavam ser cerca de 100 dólares. Um membro da família disse-me que nem se preocupavam em obter os cupões de racionamento que lhes são devidos porque não precisam deles.

Tudo está organizado em torno da guerra e do exército, como no tempo de Saddam Hussein. Saddam importou cerca de dois milhões de trabalhadores árabes do Egipto durante a guerra com o Irão. Além disso, colocou mulheres a trabalhar nos serviços públicos e na administração, para que os homens pudessem ser usados para satisfazer as suas necessidades militares. Agora, a mesma política está a ser levada a cabo no Curdistão. A única diferença é que actualmente a mão-de-obra é importada do Curdistão iraniano para trabalhar na construção e na agricultura com salários de 300 a 400 dólares por mês. Como o número de trabalhadores trazidos do Irão tem aumentado nitidamente, as autoridades das províncias iranianas do Curdistão e do Kermanshah de maioria curda querem ficar com a responsabilidade de organizar esse tráfico humano e obviamente obter uma percentagem do dinheiro envolvido nos contratos. Isso permitiria à burguesia curda do Irão ficar com parte dos lucros recebidos pelos capitalistas curdos do Iraque da exploração desses trabalhadores. Aparentemente, este é o maior feito do governo curdo do Iraque em relação ao povo trabalhador de ambos os lados do Curdistão!

A dependência económica aumenta

Os dois principais partidos curdos iraquianos não dão nenhuma atenção à produção. Nem sequer as picaretas ou as portas de madeira são feitas localmente, para não falar das janelas para automóveis ou outros produtos manufacturados. Há poucas fábricas e oficinas, mesmo para fazer artigos simples e básicos, à excepção do cimento e de poucas outras coisas. Os dois partidos dependem do Irão, da Turquia, da China e da Coreia; eles importam literalmente tudo. Na região controlada pelo governo curdo, quem tem dinheiro consegue encontrar de tudo – televisores, máquinas de lavar roupa, aparelhos de ar condicionado, tudo fabricado no estrangeiro.

Cerca de 400 a 500 camiões por dia entram no Curdistão iraquiano em Marivan (uma cidade curda na fronteira com o ocidente do Irão) e regressam vazios. Os funcionários das alfândegas iranianas nem sequer se incomodam a inspeccioná-los no regresso. Trazem pepinos, tomates, melancias, cebolas, batatas e outra fruta e legumes do Irão. Tudo isso já foi produzido no Curdistão iraquiano. As uvas locais eram famosas pela sua qualidade mas, depois da chegada dos norte-americanos, mesmo elas desapareceram. Um agricultor de cerca de 70 anos disse-me: “Não consigo vender as minhas uvas, mesmo saídas directamente das vinhas, de tão baratas que estão a ser vendidas no mercado as uvas iranianas”.

Há duas fábricas de cimento em Sulaymaniyah no Iraque, mas em média são importadas diariamente cerca de 50 carregamentos de camiões de cimento do Irão. Os veículos pesados, sobretudo os enormes camiões recém-chegados de França, estragam as estradas. As principais importações da Turquia são o petróleo e o gás porque a refinaria de Biji, perto de Kirkuk – capaz de fornecer todo o Iraque – está fechada. As massas dizem que as forças da resistência a sabotaram.

Há canalizações de água nas aldeias. Os aldeões que regressaram vivem do gado. Há vastas áreas que querem transformar em pasto para gado, usando vacas importadas da Holanda. Quase todos os produtos lácteos aqui consumidos são agora trazidos do Irão. O sabão e outros produtos de higiene são importados da Turquia. Todo o ferro e o aço também vêm do Irão e os electrodomésticos e outro equipamento eléctrico vêm da China e da Coreia.

Kirkuk é uma região rica em petróleo. Diz-se que daqui a 150 anos, quando o petróleo secar na maior parte das outras regiões, Kirkuk ainda terá petróleo. O crude petrolífero é enviado através de um oleoduto para a Turquia para ser refinado e regressa depois ao Iraque em camiões-cisterna. Cerca de 90% de todos os camiões que entram no Curdistão iraquiano vindos da Turquia transportam petróleo. A gasolina é racionada: 80 litros por semana para os motoristas de táxi e 40 litros para os outros condutores. A gasolina é comprada em grandes latas metálicas vindas do Irão.

Em suma, em termos económicos, o Curdistão iraquiano é totalmente dependente.

As relações com o Irão

Sulaymaniyah é uma ponte comercial iraniana no Iraque. Os iranianos vão para aí trabalhar como engenheiros civis, agentes de emprego e homens de negócios. Entre eles provavelmente também estão agentes dos serviços secretos. Viajar entre o Irão e o Curdistão iraquiano é simples. Tudo o que é preciso para atravessar a fronteira é um cartão de identificação. Já foi ainda mais fácil, mas foram tomadas algumas medidas de controlo, supostamente para impedir a propagação de doenças. A verdadeira razão é que o governo curdo iraquiano assinou um contrato com a agência de emprego da província iraniana de Kermanshah para ela enviar trabalhadores iranianos. Esses trabalhadores estão cobertos por um seguro de saúde. Por outras palavras, a exportação de trabalhadores foi institucionalizada.

Os grossistas iranianos estão activos no Curdistão iraquiano. A Companhia Comercial do Irão-Sulaymaniyah importa quase tudo, desde a comida ao equipamento eléctrico e materiais de construção. Os empregadores iranianos também se salientam na construção civil e na construção de estradas. Os iranianos também estão activos na agricultura. Durante a era de Saddam, os curdos foram expulsos da zona de Khaneghein, no sudeste do Curdistão, perto da fronteira iraniana e as suas terras foram confiscadas pelo estado, supostamente para conversão à produção de fruta. Agora, essas terras foram oferecidas aos iranianos para voltarem a semear grão e outras culturas.

Planeamento e serviços

Em todos os lugares para onde se olha, edifícios e instalações estão a ser demolidos e novos a ser construídos. Não há nenhuma coordenação entre as câmaras municipais e os serviços de água, gás e electricidade. Uma companhia turca obtém um contrato para construir uma estrada. Termina o trabalho, cobra e parte. No dia seguinte, a estrada tem de ser escavada para colocarem novas linhas eléctricas, canalizações de água ou esgotos. Pensar no que é necessário fazer só ocorre depois de as coisas estarem construídas. Não há nenhum planeamento coordenado. Tudo é caótico e desorganizado. A electricidade é irregular e a água não é potável. O lixo acumula-se à frente das casas, durante vários dias de cada vez.

Diferenças de classe

As diferenças de classe estão a aumentar. Por exemplo, as pessoas dizem que estão a ser gastos 150 milhões de dólares em obras numa moradia em Dohuk para a família de Barzani, o clã que controla o KDP e o Curdistão iraquiano ocidental. Eu conheço uma outra família que não consegue pagar o seu aluguer de 100 dólares por mês. Conheço um refugiado que foi comandante de um pequeno grupo de peshmergas e que depois foi viver na Europa. Voltou ao Curdistão e já gastou 128,000 dólares na construção de uma casa, sem contar com o custo do mármore ainda não colocado. Ele acabará provavelmente por gastar duas vezes esse valor. Tem quatro guarda-costas privativos. Muitos homens que foram refugiados obtiveram agora lugares para si próprios e para exploraram os seus antigos camaradas. Muitos deles empregam trabalhadores do Curdistão iraniano. Vários perderam todos os seus antigos valores progressistas, de tal forma que a poligamia é comum entre os ex-peshmergas.

Em resumo, a situação é tal que as massas têm de escolher entre um dos dois partidos curdos dominantes (o PUK de Talabani ou o KDP de Barzani). Há apenas uma minoria que não se rendeu a essa situação.

O descontentamento popular

Embora o PUK e o KDP sejam os partidos dominantes, é permitida a actividade política de forças curdas de oposição. As pessoas não estão contentes. Um oficial de artilharia pesada do exército de Jalal Talabani comentava furioso: “Mum Jalal (Mum, que significa professor, é uma forma curda de tratamento muito usada) beija as mãos de Sistani (o principal aiatola xiita aliado dos EUA) e vai aos EUA prometer atacar o PKK (a guerrilha nacionalista do Curdistão turco que procurou refúgio do governo turco no Iraque e que a Turquia quer eliminar). Também se diz que Mum Jalal recebeu ordens dos EUA para chamar terrorista a qualquer pessoa de que não goste. Quando nos queixamos da electricidade, dizem que somos terroristas. Seja o que for que digamos, se protestamos contra qualquer tipo de injustiça, as autoridades chamam-nos imediatamente de terroristas.”

As forças militares curdas e as relações sociais retrógradas

O governo curdo tem estado a organizar as suas forças militares restabelecendo as relações tribais e de clã. Por exemplo, pedem a alguém próximo do governo para arranjar 50 homens para a Guarda Nacional e dizem que pagarão a cada homem 400 dólares por mês. Ele junta 50 pessoas com base em relações tribais e feudais. Este método é muito conhecido. Era a maneira como o regime do Baath de Saddam recrutava e organizava as suas forças militares durante a guerra Irão-Iraque – comprando um senhor feudal local. (Saddam pagava aos grupos curdos traidores de base clânica Josh, criados para combaterem o PUK e o KDP. Às vezes eles mudavam de lado, dependendo da posição dos seus senhores feudais. No Curdistão, onde o feudalismo de base agrária é mais comum que no Iraque árabe, os chefes de clã são normalmente proprietários feudais.) Desse modo, eles também fortalecem as antigas formas das relações sociais. De facto, pode dizer-se que os compradores (os capitalistas dependentes do imperialismo) e o estado feudal do Iraque, incluindo o Curdistão, não mudaram. Só mudou o actual regime, não a sua natureza de classe.

As forças norte-americanas de ocupação

Os soldados dos EUA não estão posicionados nas cidades curdas iraquianas. Mas há muitos milhares deles a treinar soldados curdos dentro das guarnições militares. Um oficial da Guarda Nacional que está a ser treinado pelos norte-americanos disse-me que todos os instrutores no quartel são norte-americanos. Os curdos só lá trabalham como tradutores. Mesmo os peshmergas estão a ser retreinados para servirem os interesses norte-americanos.

Durante o regime de Saddam, devido à necessidade de homens para a guerra com o Irão, ele decidiu impedir a qualquer preço a entrada de drogas no país. Mas, desde o início dos anos 90, uma crescente quantidade de narcóticos tem entrado no país e o consumo de drogas tornou-se mais comum no Iraque, primeiro nas universidades e depois entre os intelectuais. Falei com um guarda fronteiriço que é responsável pela luta contra o tráfico de droga. Ele nunca foi treinado. Em vez de equipamento ou cães, tudo o que lhe deram foram imagens de heroína e ópio, para que ele soubesse como eram.

Questões finais

O canal de televisão da zona sob controlo de Talabani emitiu uma entrevista ao Dr. Amir Hassan Pour. [Excertos dessa entrevista aparecerão numa futura edição do SNUMAG.] Esse programa foi bem recebido por muita gente por causa da sua denúncia e da posição radical que ele assumiu contra os EUA. Muita gente com quem me encontrei disse-me que há muito tempo que não ouviam ninguém denunciar tão claramente a natureza dos EUA e do governo curdo iraquiano, sem esconder nada.

O jardim dos túmulos dos combatentes iranianos martirizados na luta armada contra o regime islâmico ou que foram assassinados pelo regime islâmico no Curdistão iraquiano ainda incute muito respeito e interesse das massas que tudo fazem para o proteger.

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