Do Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar (SNUMAG) de 8 de Dezembro de 2008, aworldtowinns.co.uk

Crítica de Cinema:
A Valsa com Bashir – Sentir-se bem sobre sentir-se mal

A Valsa com Bashir é um filme importante porque é muito poderoso. A força dele vem das invulgares escolhas do realizador em relação ao formato e à perspectiva, de modo a que a forma como a história é contada transmita o seu conteúdo em paralelo com – e intensificando enormemente – o desenrolar da própria narrativa. Mas essa mesma força torna imperativo que se clarifique o emaranhado das várias camadas de significados. A força emocional do filme é, na realidade, parte do que ele tem de problemático. Deixa as audiências tão atordoadas, que é difícil dedicar-lhe a atenção cuidadosa que esta arte na realidade requer.

A Valsa com Bashir é contada quase inteiramente em cinema de animação, o equivalente cinematográfico à banda desenhada. Mas este meio deliberadamente irreal é utilizado para levar a cabo uma verdadeira interrogação em documentário sobre a experiência do próprio realizador quando ele tinha 19 anos e foi rudemente arrancado ao seu activo e caótico ambiente de adolescente e empurrado para a invasão israelita do Líbano em 1982 e para a morte de milhares de civis nos campos de refugiados palestinianos de Sabra e Shatila.

O filme abre com uma cena descrita com uma lucidez alucinante. Uma matilha de 26 cães ferozes atravessa ruas e praças, dispersando os transeuntes e as mesas dos cafés à sua passagem. O seu destino é um prédio de apartamentos, onde eles uivam a uma personagem vista em silhueta numa janela muito alta, enquanto esperam para a despedaçar. Imediatamente a seguir, estamos num caloroso café de Telavive. O que acabou de aconteceu foi um pesadelo recorrente e Boaz, o homem à janela, chamou, a meio da noite, o realizador Ari Folman para contar esse incidente ao seu amigo e procurar consolo.

Os dois serviram juntos no exército israelita durante a invasão do Líbano. Boaz estava numa unidade que levou a cabo ataques nocturnos a aldeias libanesas para apanhar “suspeitos” palestinianos. Como ele não conseguia fazer mal a seres humanos, puseram-no, em vez disso, à frente da patrulha para disparar sobre os meio esfomeados cães da aldeia. Embora nos seja dito que terem deixado latir esses cães poria em jogo as vidas dos soldados israelitas, a memória reprimida dos 26 animais que Boaz matou – ele manteve uma cuidadosa contagem – regressa agora.

Porém, o filme é mais complexo e convincente do que conseguiria dizer uma sinopse. Folman não está só a dar-nos uma lição de psicologia nem a trivializar a morte de palestinianos através da culpa pela morte dos cães. Pelo contrário – a morte a sangue frio dos animais é utilizada para infundir nos espectadores um crescente temor que os seus personagens e espectadores possam aceitar, enquanto a morte de seres humanos com que seremos confrontados a seguir é tão horrível que nem o próprio Folman consegue pensar nisso. A conduzir o carro à chuva a caminho de casa depois desse encontro a altas horas da noite, o realizador percebeu que não tinha absolutamente nenhuma memória das suas experiências do tempo de guerra. Todo esse período da sua vida tinha-lhe ficado inacessível.

Mas esse encontro faz com que Folman tenha o seu próprio sonho: ele e outros rapazes – a magra anatomia deles salienta que ainda não são homens, embora mais tarde nessa sequência vá brotar uma barba rala nos seus rostos – estão a flutuar meio adormecidos e nus durante a noite num oceano tipo útero. O céu é de um amarelo pálido mas estranhamente intenso. Essa cor ilumina muitos dos momentos chave do filme. Não é a cor luminosa e alegre da luz solar, mas uma cor que depois aprenderemos a reconhecer como sendo o brilho pálido das labaredas militares. Mais para o fim do filme, deixará de ser a iluminação misteriosa dos sonhos e passará a iluminar os horrores antes escondidos na escuridão da sua mente. Os rapazes emergem da água para a praia, puxam de jeans, agarram em espingardas automáticas e avançam para as altas torres de apartamentos e hotéis alinhadas à beira-mar. Do outro lado dos edifícios, há um brilho como o do céu sobre um estádio desportivo. Desta vez, é Folman que acorda um amigo, um psiquiatra complacente que alega que a única solução para Folman é descobrir e enfrentar as suas memórias enterradas, procurando os seus companheiros e descobrindo o que aconteceu no Líbano.

Quase todo o filme é animado, com uma combinação de imagens geradas por software (Flash), imagens feitas a partir de fotografias e desenhos à moda antiga do tipo dos que antes se associava à Walt Disney. As personagens que se movem desajeitadamente à frente de fundos estáticos e o ritmo muitas vezes irregular associado aos desenhos animados infantis de baixo orçamento recordam-nos constantemente que o que estamos a ver não é real. Mas é real: foi assim que realmente aconteceu. Muito do tempo passa-se nas visitas do realizador e nas longas conversas com os seus antigos companheiros soldados. A banda sonora consiste nas verdadeiras palavras ditas e, embora as imagens sejam desenhos animados, elas são imagens realistas dos homens que falam e dos verdadeiros contextos das suas conversas.

Devido à animação, apenas a iluminação dá muitas pistas para distinguir realidade e sonho. Mas o objectivo declarado do realizador, como personagem do seu próprio filme e como artista, é chegar à verdade e à verdadeira experiência que os que por ela passaram têm estado impossibilitados de enfrentar. Esses homens-meninos cujas vidas andavam à volta de namoradas, música rock e fumar drogas ficaram aterrorizados desde o primeiro momento em que chegaram ao Líbano. Como mais tarde recordariam, o pânico e a confusão fizeram-nos fazer coisas terríveis. Disparando as suas armas automáticas sem parar e muitas vezes sem olhar, eles mataram repetidamente civis, incluindo uma família num carro porque temiam um ataque com um carro-bomba. Folman reagiu purgando toda essa experiência da sua memória, mas outros reagiram fingindo que nada disso era real. Uma psicóloga que o realizador consulta explica a dissociação, uma das formas com que as pessoas lidam com situações insuportáveis. Ela conta o exemplo de um outro soldado israelita, um fotógrafo que atravessou a maior parte da guerra a dizer a si próprio que estava a ver tudo pelo óculo da máquina fotográfica. Só quando ele vê o seu próprio reflexo no olho de um cavalo morto é que se quebra esse mecanismo específico de defesa. De repente, para seu horror, e no pior momento possível, ele está lá, em espírito mas também em corpo. Os falangistas, membros de uma milícia aliada de Israel, tinham sacrificado todos os cavalos árabes de uma pista de corridas, no seu percurso para Sabra e Shatila.

Uma vez mais, a morte de um animal pressagia e medeia o sofrimento humano e permite-nos contemplar a morte das pessoas, tal como no Guernica de Picasso, pintado depois do bombardeamento nazi em 1937 de uma aldeia durante a guerra civil espanhola, o primeiro massacre aéreo da história. A expressão aterrorizada da cara de um cavalo transmite-nos e faz-nos recordar um horror que, caso contrário, como salientou uma vez a escritora Susan Sontag, nos deixaria entorpecidos se tivéssemos visto partes de corpos a explodir.

Folman, ficamos finalmente a saber, viu o que ninguém gostaria de ter visto. O exército israelita entrou em Beirute Ocidental, do outro lado desses edifícios à beira-mar, e cercou Sabra e Shatila. Aí, autorizaram os falangistas a entrar nos campos e sacrificarem sistematicamente milhares de pessoas, enquanto os comandantes israelitas observavam de um bunker no cimo de um edifício alto com vista para o local. O trabalho de Folman era disparar labaredas, agora tão luminosas como o sol – a confusão entre dia e noite ao longo dos seus sonhos é agora transformada em realidade – para que os falangistas pudessem fazer o seu trabalho. Numa cena crucial, um jornalista da televisão israelita recorda a sua própria experiência aí. Informado por oficias israelitas do massacre em curso, ele telefona durante a noite ao Ministro israelita da Defesa, Ariel Sharon, para lhe comunicar o massacre e lhe implorar que fizesse com que as suas forças – que, afinal de contas, detinham o controlo – lhe pusessem fim. Sharon agradece-lhe bruscamente por ele lhe ter telefonado e depois volta a dormir. As gemas dos quatro ovos que essa figura obscenamente obesa come com a sua carne de boi salgada ao pequeno-almoço do dia seguinte, enquanto dá ordens às suas tropas, têm a mesma dolorosa matiz amarela.

Então, de repente, vemos o verdadeiro sol. A animação pára e vemos imagens reais dos campos no dia seguinte. É em cor integral, não num preto e branco mais distanciador e a subtileza realista dos tons é insuportável depois das cores lisas dos desenhos animados que tínhamos visto até agora. A cabeça de uma criança de cabelo encaracolado que emerge dos escombros. Vielas completamente cheias de corpos empilhados. Pátios cheios de famílias mortas. Uma linha de mulheres que descem a rua principal, gritando à medida que reconhecem os corpos dilatados dos seus entes queridos. Quase que se pode sentir o cheiro dos corpos. As imagens duram apenas alguns minutos; é essencialmente tudo o que os espectadores do filme conseguem obter.

Agora percebemos. Folman descreve a realização do filme como “quatro anos de terapia”. O trauma tinha-lhe roubado as suas recordações de juventude. Tal como para Boaz, o seu amigo com o pesadelo dos cães, o nome desse trauma é culpa. Tal como Boaz, ele não matou ninguém mas ficou indirectamente responsável por muitas mortes enquanto as suas labaredas iluminavam a noite. Tal como Sharon, ele não actuou para fazer parar o massacre. E, tal como Sharon, ele virou-se para o outro lado e voltou a dormir. Tal como explica o seu amigo psiquiatra, essas memórias são-lhe particularmente traumáticas porque “por trás desse campo, está um outro” – os seus pais tinham sido prisioneiros no campo da morte nazi de Auschwitz. Um outro amigo compara o que eles viram em Sabra e Shatila a uma famosa fotografia de judeus forçados a marchar para fora do gueto de Varsóvia, rumo à sua morte. Folman teme ter ficado como os nazis.

O título do filme é tão importante quanto é inicialmente enigmático. No início, dizem ao jovem Folman: “Bashir foi morto. Estarás no Líbano daqui a algumas horas.” – e isso acontece. Durante grande parte do filme o espectador está tão perdido quanto Folman. Quem diabo é Bashir e o que é que a sua morte tem a ver com Folman?

O parlamento do Líbano tinha escolhido Bashir Gamayel, líder do partido falangista de base cristã e aliado próximo de Israel, como presidente do país. Ele era conhecido pelo seu primeiro nome para o distinguir de outros conhecidos membros da sua família, um dos mais poderosos clãs do país. Israel, que tinha invadido o Líbano três meses antes a pretexto de proteger a sua própria segurança limpando os combatentes palestinianos ao longo da fronteira norte, avançou muito mais para norte, até Beirute, onde forçou a liderança da Organização de Libertação da Palestina [OLP] e milhares dos seus combatentes a abandonarem o país por navio. O governo norte-americano, supostamente agindo como mediador, garantiu a segurança dos civis palestinianos deixados para trás.

As tropas israelitas cercaram então Sabra e Shatila como parte de uma operação de “limpeza” do que as autoridades israelitas descreveram como campos “vazios”. Depois do assassinato de Bashir, os milicianos falangistas uivaram por vingança. Numa cena anterior, em que uma patrulha é atingida por atiradores furtivos situados nas torres à beira-mar, um oficial israelita agarra numa metralhadora pesada e executa uma valsa longa e selvagem no meio da rua, tendo como par a sua arma, com balas a atingirem tudo à sua volta e com cartazes gigantes de Bashir nas paredes por trás dele. Os falangistas são cães sanguinários, Bashir é o seu ícone e Israel – e Folman em particular – ficaram loucos e dançaram com eles. É esta a memória que é mais do que o que este ex-soldado consegue aguentar.

Porém, infelizmente esta conclusão não está suficientemente próxima da verdade. Folman pode ter recuperado a sua memória com a realização deste filme, mas a verdade é mais que uma questão da sua experiência pessoal. Uma coisa é concentrar-se na verdade através do simbolismo e de outras técnicas artísticas. O Guernica de Picasso transmite a verdade de uma forma ainda mais poderosa porque não é realista. Outra coisa é usar o poder dessas técnicas para enganar as pessoas. O filme é muitas vezes difícil de seguir, mas isso ocorre por uma boa razão – isto é arte, e não jornalismo, e esta dificuldade faz com que os espectadores partilhem a confusão do próprio Folman à medida que ele tenta lembrar-se do que aconteceu. O realizador fez escolhas bem pensadas e efectivas na forma como conta a história. Mas o conteúdo da sua arte também interessa.

Uma das formas como o filme distorce a verdade é que dá a entender que o massacre durou uma noite. Não é difícil entender porque é que o realizador sentiu necessidade de comprimir os acontecimentos para maximizar o seu impacto. Mas essa solução não é boa. É muito diferente saber-se que o massacre não durou apenas uma noite mas mais de 38 horas.

Mas há factos ainda mais condenáveis.

Em primeiro lugar, a liderança israelita não se limitou a “valsar com Bashir”. Ela deliberadamente inflamou primeiro a situação e depois foi buscar a milícia falangista para levar a cabo o massacre.

No enquadramento político imposto pelo ex-amo colonial do Líbano, a França, o parlamento escolhe o presidente, e esse presidente deve ser cristão, não porque os cristãos sejam a maioria (o que já seria suficientemente mau), mas porque a França e mais tarde Israel e os EUA acharam (como ainda hoje acham) que podiam usar mais facilmente os clãs cristãos que os seus rivais muçulmanos xiitas e sunitas. Bashir tinha concordado em deixar que Israel ocupasse o sul do Líbano, o que eles fizeram. No dia em que ele foi morto, Sharon reuniu-se com a sua família, supostamente para entregar as suas condolências. Segundo a revista Time, “Há relatos de que Sharon disse aos Gemayel que o exército israelita avançaria para Beirute Ocidental e que esperava que as forças cristãs entrassem nos campos de refugiados palestinianos. Também há notícias de que Sharon discutiu com os Gemayel a necessidade de os falangistas vingarem o assassinato de Bashir, mas os detalhes da conversa não são conhecidos”. (Time, 21 de Fevereiro de 1983) Um facto que é conhecido é que as autoridades israelitas culparam publicamente a OLP pelo assassinato, embora o assassino tivesse sido também um cristão. Os falangistas já antes tinham massacrado palestinianos. O que aconteceu a seguir foi o que os israelitas pretendiam que acontecesse.

Em segundo lugar, Sharon não se mostrou interessado no telefonema do jornalista porque para ele não era nada de novo. O líder falangista da operação, Elie Hobeika, e o comandante israelita no local, o Brigadeiro General Amos Yanon, estavam juntos no telhado. Um tenente israelita disse mais tarde a uma comissão do Knesset (o parlamento israelita) que, uma hora depois de a milícia falangista ter entrado no campo, um oficial no campo comunicou por radio a pedir instruções sobre o que fazer com as mulheres e as crianças. Hobeika respondeu: “Esta é a última vez que você me faz uma pergunta dessas. Você sabe exactamente o que fazer.” O general israelita sabia dessa comunicação (ver indictsharon.net). Quando, vinte anos depois, um tribunal belga se preparava para julgar Sharon, Yanon e Hobeika pelo massacre, o falangista disse que em sua própria defesa testemunharia que os israelitas sabiam e aprovaram tudo. Foi morto por um carro-bomba e o caso foi abandonado por insistência dos EUA.

Em terceiro lugar, há provas de que o próprio exército israelita matou muitos palestinianos, mesmo depois de o massacre ter terminado nos campos. Só cerca de 600 cadáveres foram encontrados em Sabra e Shatila, embora se saiba que desapareceram quase 2000 pessoas e que os números reais podem ter sido mais elevados.

O jornalista britânico Robert Fisk, que chegou ao local pouco depois de os falangistas terem saído do campo, descreveu ter visto “provavelmente bem mais de mil homens e rapazes palestinianos mantidos prisioneiros no estádio desportivo perto do local”. Muitos deles tinham sido trazidos de zonas vizinhas durante o massacre ou posteriormente dos campos. Oficiais da polícia secreta israelita (o Shin Beth) e falangistas levaram alguns prisioneiros, um ou dois de cada vez. Alguns foram libertados. Mas, quando Fisk regressou, o estádio estava vazio. Uma mulher sobrevivente que fora à procura do seu marido descreveu colunas de camiões israelitas cobertos de lona a deixarem o estádio com uma carga desconhecida. Ela, Fisk e outros peritos e historiadores acham que os israelitas mataram a maioria dos prisioneiros e os enterraram em jazigos secretos. (Robert Fisk, The Independent, reimpresso pela Counterpunch, 28 de Novembro de 2001.)

Folman pode alegar em sua própria defesa que o soldado adolescente que ele era não podia ter sabido tudo isso entre a “névoa da guerra”. Fisk, apesar de estar no local, escreveu depois que ele próprio percebeu o que estava a acontecer nessa altura. Mas aqui vamos contra as consequências da decisão do realizador para contar a sua história inteiramente através dos seus próprios olhos e os dos seus amigos, tal como eles viveram os acontecimentos. O ponto de vista subjectivo do filme e o seu estilo expressionista, embora sejam uma grande parte do que o torna tão forte, estão relacionados com o seu conteúdo enganador.

Esse estilo não é necessariamente uma fraqueza. Por exemplo, Persépolis, um recente filme de animação com que A Valsa com Bashir é frequentemente comparado, também representa a história, contada na primeira pessoa e de uma forma expressionista, de uma jovem que tenta aprofundar eventos históricos esmagadores (nesse caso, a revolução iraniana de 1979 e o seu sequestro pelo regime islâmico). Mas, enquanto Persépolis tanto ilumina os eventos que narra como os dota de universalidade, A Valsa com Bashir muitas vezes tende a reduzi-los a um trauma pessoal.

Muito do que Folman conta é tão bem conhecido dos israelitas que este filme não é nenhuma surpresa. Os factos a que alude estão no relatório da comissão estabelecida pelo Knesset após um clamor público sem precedentes em Israel nos dias que se seguiram ao massacre. A comissão Kahan chegou a uma conclusão semelhante ao que muitas pessoas obterão da história de Folman: que o massacre foi obra só dos falangistas, mas que Sharon e outros responsáveis não o impediram. Essa comissão defendeu que Sharon tinha uma “responsabilidade pessoal” e que o primeiro-ministro israelita Menachem Begin era “indirectamente responsável” por não ter visto a negligência de Sharon.

Isto não chega. Embora certamente Sharon tenha uma responsabilidade pessoal, a sua negligência ou indiferença, ou mesmo criminalidade deliberada, não é tudo o que aconteceu no que diz respeito ao massacre. Ele foi cometido como parte da política israelita global para os palestinianos e o Líbano, política que levou a três invasões do vizinho de Israel e a permanentes horrores contra os palestinianos. Tudo isto é o resultado natural do sionismo – soluções lógicas para o problema da instauração e salvaguarda de um estado judeu baseado na fantasia racista de um povo judeu mundial misticamente definido e de alguma forma reunido numa única nação e dotado de um direito genético inato a uma terra já povoada há milhares de anos.

Pouco depois do massacre de Sabra e Shatila, cerca de 400 000 pessoas – quase um em cada dez israelitas – reuniram-se em Telavive para protestarem contra ele. Uma granada de mão lançada na multidão exasperou uma crise política que levou ao estabelecimento da comissão do Knesset. Mas, embora Sharon tenha acabado por ser forçado a demitir-se de Ministro da Defesa, Begin manteve-o no governo. Diz-se que Begin se queixou, em defesa de Sharon: “Goyim (não-judeus) matam Goyim, e eles querem enforcar os judeus?”. A Sharon, disse: “Você é jovem. Ainda tem muito para fazer.”

Sharon manteve-se como pilar das instituições políticas de Israel, bem como o seu principal general, e acabou por ser ele próprio eleito primeiro-ministro, até que um acidente vascular o deixou cerebralmente morto há dois anos. Por isso, mesmo que fosse verdade que o massacre tivesse sido planeado e orquestrado por Sharon e por mais ninguém, o que seria impossível, o que aí ocorreu foi depois aprovado pela classe dominante de Israel no seu todo e por uma grande parte do eleitorado.

Há uma grande diferença entre pessoas como Folman e as pessoas como Sharon que ele tão justamente odeia. Mas, em Israel, o filme não teve o tipo de recepção que Folman pensou que teria, e as pessoas que pensam como ele deveriam questionar-se porquê. O que fizemos mal?, diz ele que os seus companheiros de filme lhe perguntam.

Em vez de ser proibido ou atacado de outra forma, A Valsa com Bashir foi abraçado por muita (embora não toda) a sociedade sionista e pelo próprio governo, actualmente dirigido pelo sucessor designado por Sharon. Embora surpreendido, Folman percebe porquê. Os factos, tal como são apresentados no seu filme, “não são controversos em Israel”, disse ele numa entrevista na Grã-Bretanha (20 de Novembro de 2008, ficheiro áudio em www.filmdetail.com/2008/11/20/interview-ari-folman-on-waltz-with-bashir/). Tal como a comissão do Knesset, o filme admite que Israel valsou com Bashir mas tende a pôr a culpa nos “Goyim”, encobrindo a história completa e, sobretudo, porque é que ela aconteceu. Os seus críticos israelitas estão preocupados com o impacto do filme no estrangeiro.

Falando do apoio oficial israelita ao filme, ele diz: “Acho que eles tomaram essa decisão deliberadamente. Acho que eles perceberam que quanto mais eu critico o que aconteceu, mais Israel é mostrado como um país muito tolerante.”

Aqui ele trai o seu próprio ângulo morto. Que ele tente falar da tolerância israelita aos 10 000 palestinianos actualmente nas prisões israelitas. Quase todas as famílias palestinianas têm algum membro que passou pelas prisões israelitas. Que ele o diga às pessoas na enorme prisão que é Gaza ou nas aldeias palestinianas na Cisjordânia onde o exército israelita deixa os colonos judeus de Nova Iorque tiranizarem e espancarem os palestinianos, incendiando completamente as suas casas para os afastarem da sua própria pátria, enquanto esses mesmos soldados usam tanques e metralhadoras contra as crianças palestinianas que atiram pedras. Que ele o diga aos refugiados palestinianos em todo o mundo, proibidos para sempre de regressarem à sua pátria, enquanto qualquer pessoa que alegue ter uma herança judia é bem recebida. E que ele o diga aos judeus e outros não-árabes que tomam o lado dos palestinianos, mesmo que de pequenas formas. Quanta tolerância israelita teve Rachel Corrie, uma jovem norte-americana deliberadamente esmagada por uma escavadora blindada israelita quando ela se opôs à demolição de uma casa palestiniana? Porque ela tinha passado a linha, o governo dos EUA recusou-se a fazer pressão sobre Israel por causa da sua morte.

A linha limite da tolerância israelita, tal como a maioria dos sionistas prontamente vos dirão, é a existência do estado judeu. Pessoas como Folman, que parecem odiar genuinamente coisas que são odiosas e que expõem mesmo temas incómodos como o deste massacre, podem ser toleradas dentro desses limites, desde que elas tolerem o estado judeu. Há uma corrente rival na sociedade israelita, o chamado movimento religioso nacional cuja intolerância violenta estende-se a laicos e judeus pretensamente humanistas como Folman. Entre eles estão os fundamentalistas israelitas que colonizam as zonas palestinianas, atacam os palestinianos e depois alegam que são simplesmente judeus a defender as suas casas. Mas, independentemente de quanto elas colidam, as duas correntes operam dentro dos limites dos interesses do estado colonialista em geral. Foi por isso que um sionista laico e sóbrio como Sharon patrocinou esses loucos fanáticos religiosos.

As audiências saem do cinema aturdidas pelas atrocidades cometidas durante a invasão israelita do Líbano em 1982. Isto tem tido um efeito positivo nos espectadores da Europa continental e da Grã-Bretanha, onde está agora em exibição [incluindo em Portugal – NT] e está a desencadear uma muito necessária discussão. Este impacto pode vir a ser maior nos EUA, onde após exibições em festivais o filme será lançado para distribuição geral a 26 de Dezembro e onde uma ignorância imposta sobre os crimes de Israel é particularmente aterradora. (Uma versão em DVD em hebreu, árabe libanês, alemão e inglês será lançada em Março de 2009.) Mas, ao mesmo tempo, este aspecto positivo está emaranhado na sua dimensão negativa, a mensagem implícita de que nos basta sentirmo-nos mal sobre os crimes cometidos em nosso nome, um mérito e uma marca de esclarecimento que podem mitigar a culpa.

Folman explica que o seu filme “poderia ser sobre qualquer pessoa que desperta ao som da (música) Motown e se interroga o que está aí a fazer” – um soldado norte-americano no Vietname, diz ele, um russo no Afeganistão, um norte-americano no Iraque hoje, um ‘soldado da paz’ holandês na Bósnia, um jovem enviado para combater em guerras por “pequenos líderes com grandes egos que não se preocupam com as pessoas que morrem”. Uma música na banda sonora refere o Enola Gay, o avião norte-americano que lançou a bomba atómica sobre Hiroxima, de que um dos seus tripulantes foi consumido pela culpa até à sua morte.

É bom que pessoas como Folman se sintam mal com o que fizeram e no que se tornaram. Ele acha que ele e os seus companheiros também foram vítimas, que a guerra lhes roubou a sua humanidade. Até certo ponto, isso é verdade, mas não é suficiente. Há questões mais fundamentais para os soldados dos exércitos reaccionários que Folman menciona e para os cidadãos dos países que esses exércitos representam: porque é que eles foram enviados para combate, por que interesses e qual a sua posição em relação a esses interesses. Assim que eles acordem um pouco, será que assumirão a responsabilidade, atravessarão a linha e mudarão de lado, ou voltarão a dormir, satisfeitos com que a sua angústia seja suficiente para preservarem a sua humanidade enquanto a sua sociedade esmaga massas de seres humanos?

 

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